Me assusto com a velocidade com que o tempo passa ultimamente - não
digo do tempo das horas, mas o tempo da história. Um ano e meio
atrás, em novembro de 2014, eu escrevia sobre a peça Cantata
para um bastidor de utopias, da
Cia do Tijolo, como sendo uma peça sobre nosso passado - cujas
marcas em nossa sociedade ainda são presentes
[http://bit.ly/cG14119]. Decido ouvir as músicas do espetáculo, que
em 2015 teve o lançamento de livro e cedê, quando em cartaz no TUSP
- faço isso às vezes, mas em geral me centro na segunda e na última
faixa, "Dia triste em Granada" e "Ainda cabe sonhar",
respectivamente. Desta feita deixo o disco avançar. As músicas da
peça transcorrem na Espanha que poderia ser o Brasil pós-64 - nada
de novo. No terceiro ato, na cena entre o investigador-juiz Pedrosa e
a conspiradora pela república, Mariana Pineda, começo a notar que
a peça, de 2013, hoje fala mais do presente que do passado:
"PEDROSA - Mariana! [pausa. Corta mais um fio] Uma bela mulher como a senhora não sente medo de viver só?
MARIANA - Medo? Nenhum, senhor Pedrosa!
PEDROSA - Há tantos liberais e tantos anarquistas em Granada, que o povo não vive seguro. A senhora sabe!
MARIANA - Senhor Pedrosa! Sou uma mulher de meu lar e nada mais!
PEDROSA - E eu sou o juiz. É por isso que me preocupo com estas questões. Desculpai, Mariana, porém já faz três meses que ando louco sem poder capturar um dos cabeças..."
Pedrosa, o juiz, à caça de um dos
cabeças dos que conspiram contra o rei e querem implementar a
república na Espanha (apenas pra lembrar, do latim: res=coisa
publica=do povo).
Mantenho a rubrica de "corta mais um fio": nessa hora, fios
cruzam todo o palco, num emaranhado que remete a ruas, mas
também a relações. Leio agora, três anos depois da estréia, o
golpe de Estado dado no Brasil e uma ditadura se desenhando num
horizonte próximo: remetem também aos direitos: um fio a menos, um
direito a menos, uma chance a menos de escapar disso que se
auto-denomina justiça. Os fios que limitam nossos movimentos em
sociedade, acabam por ser também os fios que nos protegem dessa
mesma sociedade. Mariana deve temer viver só não apenas por causa
de liberais e anarquistas, como também por dever temer o Estado, o
rei, o juiz.
Presa, Mariana é condenada à
morte, mas pode se safar, se colaborar com a justiça:
"PEDROSA - Senhora, já é hora. Sabe qual é a sentença?
MARIANA - Sim, sei, mas imagino ser mentira. Tenho o pescoço curto para ser justiçada. E para que eu morra toda Granada teria de morrer?
PEDROSA - Eu não quero que morras, mas com a minha assinatura posso apagar o lume de seus olhos. Com uma penada e um pouco de tinta, fazer que adormeça um longo sono. Fale logo, que o rei daria indulto. Quais são, diga seus nomes. Vamos, fale! Com a justiça não se joga assim.
MARIANA - Não falarei. Quem é que manda dentro da Espanha vilanias destas? Que crime cometi? Por que me matam? Nessa bandeira de liberdade bordei o amor maior da minha vida e hei de permanecer aqui trancada? Hei de morrer?
PEDROSA - Mariana, pela força há de dizer, os ferros doem muito e uma mulher é sempre uma mulher.
MARIANA - Não falarei, já estou morta. Que sono mais longo sem sonhos nem sombras. Pedro, eu desejo morrer pelo que tu não morres, morrer pelo puro ideal que iluminou teus olhos, a liberdade.
PEDROSA - Queres morrer!
MARIANA - Não falarei, não quero que meus filhos me desprezem! Eu quero que meus filhos tenham um nome claro como a lua cheia! Eu quero que meus filhos tenham um respledor no rosto que nem anos nem rosto poderão apagar. E se eu delatasse, pelas ruas de Granada, este meu nome seria dito com temor."
Os tempos são outros, é certo. Não
vivemos mais uma época de heroísmos ou idealismos: os perseguidos
pela nossa ditadura-em-construção-via-judiciário não são presos
por lutarem por nobres ideais - talvez o líder tenha alguns ideais a
mais, certa vaga e tímida noção de coisa pública para todos, e é
por isso que têm tanta gana e tanta dificuldade para agarrá-lo -, e
antes da forca, preferem, sim, delatar (e eu, homem do século XXI,
não os critico por isso). Forca, aqui, apenas como força de
expressão: no século XXI não cabe bem a quem usa toga sair matando
a torto e a direito (para isso existe polícia militar ou grupos de
extermínio). E essa talvez seja uma diferença importante nas formas
de torturas praticadas por forças do estado: quando a vida está em
jogo, o jogo dura pouco: Mariana Pineda delata ou morre. Vladimir
Herzog delata ou morre. Às vezes o torturador falha: Dilma não
delatou e não morreu - pelo contrário, virou a algoz de seus
próprios carrascos, impotentes diante do "sexo frágil"
fragilizado e exposto que eles não conseguiram vergar (o voto de
impeachment de Bolsomico foi mostra desse ressentimento dos sádicos
impotentes). Nas delações atuais, ninguém teve a vida (biológica) ameaçada, ninguém foi posto sob a aporia "delate ou morra".
No século XX, os
ferros contra o corpo são importantes: eles marcam a vida da vítima
até a morte, que pode ser logo, se preciso for. No século XXI, os
ferros estão presentes, mas ficam à distância, restringem a
liberdade sem tocar a vítima: o corpo se mantém são, mas
confinado: o preso é culpado por ser suspeito - nada de novo diante
dos regimes totalitários do século passado. As delações premiadas
que o senhor Moro consegue colher acontecem na mais estrita
liberdade, em tudo o que há de ambíguo na palavra "estrita".
O corpo, esse não sofre de fora: Odebrecht, Machado, Cerveró,
ninguém levou um soco, um choque, nada: seus corpos seguem
inviolados: no século XXI descobriu-se ser mais efetivo violar a
humanidade (claro, isso não vale para quem já tem sua humanidade
violada desde o nascimento, essas "quase-pessoas" que o
Estado considera sem valor e sem direitos, torturados e assassinados
pela Polícia Militar por serem sobras humanas, numa reedição
pós-moderna dos infiéis da idade Média e Moderna, a se crer no
beneplácito que o papa-óstia-mor de São Paulo dá às execuções
extra-judiciais praticadas pelos seus subordinados). Violar a
reputação, violar os direitos, violar a humanidade - não o corpo,
marca visível do Antigo Regime e dos regimes totalitários e
ditatorias do século XX. Se este sucumbe, é por fraqueza do
suspeito-por-conseqüência-culpado, não por ação dos carrascos -
minha mãe me lembrou, quando ficou escancarada a esbórnia
judiciária em cima da Constituição federal, com a divulgação de
áudios ilegais da presidenta da república (de bananas), que Dilma e
Lula padeceram de câncer recentemente, e situações de estresse
podem desencadear o retorno (agressivo) da doença. Por ora, essa
tática ainda não surtiu o efeito desejado pelos manifestantes da
camisa canarinho.
Outra marca de pós-modernidade no
nosso golpe atual, que torna uma fala de Pedrosa démodé:
quem é o rei que nos rege, ou que esta esperando ser içado ao
trono? Quem é o rei que dará o indulto aos delatores? Temos os
juízes do rei, Coronel Mendes e justiceiro Moro à frente, mas a
serviço de quem eles agem? Das leis - e, conseqüentemente do povo,
da democracia, do Estado de Direito -, é pornograficamente explícito
que não se trata. Do presidente golpista, o pusilânime Micher Temer
(por sinal, sua pusilanimidade é um prato cheio à extrema-direita
golpista), ou dos social-democratas-defensores-do-golpe, tampouco. Os
irmãos Marinho e a rede Globo, apesar de posarem de majestade, não
têm cabeça para sustentar a coroa. Estaria no estrangeiro? Não
creio - não apenas no estrangeiro. E ainda que se ache um grupo a
quem toda esta nossa farsa seja encenada, não há um rei, não há o
rei. No lugar do rei, entidades, forças sempre faladas (e efetivas),
mas ocultadas na sua concretude nas palavras dos ideólogos desses
mesmos ídolos, como bem definiu o teólogo Jung Mo Sung: os
mercados, os investidores (sic),
os empresários (rubrica na qual são incluídos rentistas e
especuladores).
Ao cabo, fica difícil não atribuir
a realeza ao monsenhor Capital - já desvendado em sua teologias
desde Marx. Atribuir ao capital (nacional e internacional, financeiro
e "produtivo") o atual golpe e ditadura-em-construção é
simplista, admito, e pouco explica. Contudo, enxergar a situação
atual - em que o golpe não possui (ao que se percebe) uma
coordenação centralizada - como uma confluência de interesses
determinados em última instância pelo capital (que não é só
riqueza, é também - e principalmente - poder), ajuda a entender
quem tem e terá direito ao indulto do rei (ou seria de deus?), quem
não - é por isso, por exemplo, que Temer pode ser presidente
(golpista) da República Bananeira do Brasil. E quem acha que querer
discutir o capitalismo e suas "externalidades" em pleno
século XXI é ter parado no tempo, bem vindo ao século XIX: convém
rever a foto do gabinete do presidente golpista - homens brancos
heterossexuais ricos escravocratas fazendo uso do Estado para
interesses oligárquicos e particulares - e, mais, ler algumas das
propostas futuristas desses aliados sobre papel da mulher (incluído
aí direito ao corpo e a questão do aborto), trabalho escravo,
educação, saúde, pena de morte...
Mas não falemos em crise, que só o
trabalho liberta.
08 de junho de 2016
Democracia e representatividade do Brasil no século XIX, versão século XXI |
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