sábado, 20 de agosto de 2011

Da precariedade dos argumentos – o movimento feminista da Unicamp (III)

(ou, de quando a defesa ajuda quem ataca)


Aproveito a manifestação “contra a violência à mulher” promovido pelas estudantes da Unicamp há pouco para terminar minha trilogia contra o movimento feminista da universidade.

Me atenho ao detalhe da chamada: a questão feminina estará tão bem encaminhada que haverá apenas uma espécie de violência contra a mulher? Ou estará num patamar tal, da violência total – o apocalipse, o campo de concentração –, de forma que é de se questionar o porquê de uma passeata e não de um convite a um ato um pouco mais radical – suicídio coletivo ou mulheres-bomba. Claro, não é um erro de grafia que invalida a iniciativa. Invalida-a, por exemplo, ter sido encampada pelo DCE-PSol (foge ao escopo e ao espaço desta crônica explicar o porquê, mas este vídeo ilustra um pouco a ética do grupo/partido: www.vimeo.com/7630032).

O lapso na grafia, contudo, aponta o que trouxe nas outras duas crônicas: um problema conceitual que não é inconsciente – ainda que a seja de se imaginar que as feministas (feministas, não as mulheres!) não consigam ir muito além de onde estejam.

Começa que para elas violência parece ser só a física – no máximo as discriminatórias –, e de homens contra mulheres ou do sistema contra elas – em geral externas, via intervenções cirúrgicas ou indumentária. As auto-inflingidas, as de mulheres contra mulheres, essas inexistem ou são aberrações. Disso decorre que os inimigos são poucos e facilmente identificados (o texto das feministas da Unicamp é de uma precariedade exemplar): o homem, o machismo, o capitalismo – como se não houvesse uma tradição no Ocidente de no mínimo dois mil anos de história reforçando dado papel da mulher, para ficar apenas numa faceta bem visível da questão.

Ademais, banalizar toda tentativa de assédio como sendo estupro e ponto, ao espalhar boatos em série de estupros (passei a desacreditar todos quando em dado período de 2008 se tornaram semanais), o movimento perde credibilidade e a própria violência contra a mulher perde a seriedade com que merece ser tratada – acho que estas minhas crônicas ilustram bem isso.

Pior: certa feita ouvi no Bandejão uma conversa entre um grupo de alunos ao meu lado: criticavam um deles por ter embriagado uma amiga para que ela “consentisse” fazer sexo anal com ele: “fazer isso com puta tudo bem, com amiga é sacanagem”. O fato de ser um “amigo” embrumaça a história, mas que se trata de um estupro, como aquele em que um desconhecido encosta a faca contra o pescoço da mulher, não há dúvidas.

Porém, apesar do mesmo nome, são violências diferentes – e não falo aqui de gradações –, que exigem precauções diferentes. Uma exige não dar bobeira entrando sozinha numa viela às onze horas da noite; a outra, tomar cuidado com o seu colega de sala, um cara que parecia tão legal, isso numa festa, onde tudo até então era só diversão. Ao começar logo com a palavra ESTUPRO, em letras garrafais, e sem ter o cuidado de fazer a distinção entre as diversas modalidades dessa violência – pelo contrário –, o imaginário popular fixa logo o caso “violento”, deixando que o caso mais corriqueiro continue acontecendo, encarado como mera “sacanagem”.

Que defesa das mulheres é essa?


Campinas, 27 de julho - 20 de agosto de 2011.


ps: Questão que me surgiu ao ver chamada para nova marcha contra "a violência contra a mulher em Campinas": as feministas querem mesmo que os estupros acabem, o que, dado o atual contexto sócio-histórico brasileiro exige, infelizmente, certas precauções e auto-restrições - e não falo das mini-saias -; ou desejam acima de tudo punição ao estupradores, sem notar que isso pressupõe a necessidade do estupro?

2 comentários:

rafael disse...

daniel, ao final da trilogia, ainda me parece bastante obscuro o "motor" de sua crítica ao argumento das feministas. primeiro, supuz mau humor (e devo confessar que você respondeu graciosamente, ao dizer que o movimento feminista te deixava de mau humor). depois já não sabia mais o que supor: você alegou que há mesmo é uma tática terrorista para arrebanhamento de mulheres; o que é coisa que faz sentido, mas ainda assim me parece difícil de verificar estatisticamente (os estupros são ou não reais? - não sei, mas é provável que haja exagero). por fim, você ataca a superficialidade do movimento quanto à questão "o que é violência contra a mulher, ou o que é assédio". em suma, me parece que são esses os seus motores: 1) HORROR a frases feitas, 2) DESCONFIANÇA de que o mal seja tamanho, 3) REPÚDIO à superficialidade da discussão. deixei de reparar em alguma coisa?

se esses são mesmo os seus motores, cumpre-me, como interlocutor, tentar mitigá-los. isso eu não tentaria fazer se você tivesse sido convincente em sua argumentação.

primeiro, frases feitas podem não ser tão impactantes como a fala de um grande poeta ou orador; eu também acho que faltam bons discursos nas esferas políticas; mas elas podem funcionar bem, no sentido de se tornarem populares, no sentido de darem uma unidade global para um movimento, enfim, no sentido de poderem transmitir uma ideia num contexto específico; eu tenho certeza que você poderia rebater cada ponto desses, e por isso mesmo a discussão pode ser boa.

segundo, o mal pode não ser tão grande como fazem parecer, mas temos de nos recordar que não é a sua dimensão que justifica a luta; isto é, mesmo que fossem poucos os casos de estupro, ainda assim o protesto é válido. talvez a sua indignação se dê por causa da MENTIRA e da LUDÍBRIO; mas também temos de considerar que também cumpre aos seguidores checar a veracidade das informações que lhes são passadas - isso deve ser a primeira máxima de um cidadão, não acha; todos, num coletivo, devem assumir um comportamento ativo? quer dizer, as opiniões sobre a dimensão desse mal devem variar muitíssimo, e não deveria ser culpa de alguém se ele ou ela tem uma ou outra opinião; a culpa aparece, por exemplo, quando alguém impõe uma opinião a outrem. se isso acontece nas reuniões do coletivo feminista, então eu tenho uma crítica para fazer.

terceiro, sinceramente nunca fui a nenhuma reunião do coletivo, assim acho difícil julgar a superficialidade ou não do discurso delas. entretanto, acho que, muito provavelmente, a opinião de muitos ali, talvez da maioria, seja bem mais sofisticada do que aparece em seus panfletos. a linguagem panfletista é assim mesmo, superficial; não acho que seja justo tomar esse material para julgar o discurso feminista. para mim, é muito provável mesmo que muitas pessoas façam as mesmas considerações que você fez sobre o "amigo do anus".

para não ficar somente na crítica de sua argumentação, acrescentarei um dado. diz que as feministas queriam envolver as mulheres de barão, indo além da comunidade da unicamp; mas suas reuniões teriam se realizado sobretudo nas dependências da unicamp. isso sim me parece um erro de estratégia conspícuo, e eu me pergunto: o que aconteceu? ingenuidade, falta de prática, falta de força ou falta de honestidade, entre outras coisas?

na minha opinião, a sua argumentação não foi, digamos, "encantadora o suficiente" para esconder a fragilidade daquilo que te move; ou então eu não percebi direito o que é isso que se encontra por detrás dessa série. problemas com os partidos? seria o coletivo feminista tomado tanto quanto se diz do dce?

ah, e você nos prometeu uma crítica construtiva, sem cumpri-la!

Ana Kamayurá disse...

Bem, ler essa sua crítica - que não está clara se é contra tal manifestação de violência contra a mulher ou somente incompatibilidade com o movimento feminista - me deixa forte impressão de que você não acompanhou nem de longe as discussões e reivindicações da marcha. Eu participei da passeata porque sinto muito medo de ser estuprada e me vejo diariamente impedida de fazer várias coisas em função da insegurança. Se tivesse acompanhado com mais cuidado, perceberia que nela havia um consenso geral de que a violência contra a mulher não se restringe ao estupro, mas está naquilo que a agrida moralmente, fisicamente ou a impessa de disfrutar do seu direito de ir e vir, entre outras coisas.
Ao final do seu texto ainda é colocado um exemplo absurdamente destoante do assunto, pois trata-se de uma discussão entre homens com uma tentativa distorcida de moral.
Com certeza discordo de alguns pontos do movimento feminista, como o envolvimento de partidos ou algumas posições mais radicais, mas isso não invalida de forma alguma a marcha realizada em Barão Geraldo. É preciso chamar muita atenção para esse caso e agregar o maior número de pessoas, ainda que os resultados sejam pequenos. Os estupradores tem que ser severamente punidos sim, mas além disso, foram pedidas várias outras medidas de prevenção que não tem nada a ver com usar roupas mais longas ou se Trancar em Casa.