Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em
minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu
assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano
e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso
passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso
presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o
passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço
Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser
concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme,
ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a
crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao
invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de
esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia
fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos
um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas
do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir
apresentações e "papérs" para seminários e congressos
marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções
teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do
outro lado do mar
é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão
majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras
da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O
filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com
o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas
árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de
guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase
ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas
onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por
militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no
meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A
Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que
as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de
tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres
Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração
de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte,
mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações.
Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são
a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico
da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua
transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo
receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da
pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois
de parte da população perder o pouco que tinha, devido à
bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo
Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes
de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa
estão na própria Europa - são a própria Europa.
A
honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A
independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria
família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário
comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro
retratado por Abril
Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo -
dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o
fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu
sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a
fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua
consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar
à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é
encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me
remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do
fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de
igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático
para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega
um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar
o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as
pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito
sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.
15 de junho de 2016
15 de junho de 2016
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