Como comentei alhures, ao lado do meu prédio levantaram uma torre de trinta andares - dessa arquitetura em voga por SP, que parece essas gaiolas de expôr galinhas em loja agropecuária do interior -, de modo que da minha cozinha dá para ver a sacada de algumas das kitnets - agora rebatizada de studios. São três apartamentos que tenho visibilidade de uma nesga do interior, além da varanda. Pela alta rotatividade que teve nos dois primeiros anos, suspeitava serem para locação de curta temporada, mas que os últimos inquilinos me fizeram ficar em dúvida.
O de baixo está vazio desde sempre. O do meio já teve três ou quatro moradores nesse curto tempo. Atualmente, há mais de um ano, acho que mora um jovem, ainda que tem dias que imagino ser uma república, outros acho que é um casal. Sei que não houve mudança porque são os mesmos móveis e estilo: jovens na sacada, em conversas animadas e barulhentas; som potente, com baixos marcantes e um gosto musical ok (nada de sertanejo e bolsomusic). O que chama a atenção é a discussão mensal de um homem com uma mulher. Se é sempre a mesma ou uma diferente por mês, não sei. O que sei é que o rapaz grita, berra, dá chilique, enquanto a moça tenta manter uma conversa racional. Não tem como não ouvir. A mulher, espero que não seja a mesma, ou ela precisa de ajuda profissional. Se for uma diferente a cada mês, parece que o jovem tem um modo repetitivo (e nem tanto peculiar na nossa sociedade machista) de se livrar delas e precisa de ajuda profissional também.
Contudo, é o apartamento de cima que me chama a atenção. Após um tempo vazio, três inquilinos passaram pelo lugar, o mais longevo deles pouco mais de meio ano. O atual está há mais ou menos o mesmo tempo.
De início, apareceram coisas de limpeza na nesga do interior que me permite observar. Vez ou outra a luz aparecia acesa, às vezes a noite toda, o que me fez desconfiar que ainda não havia se mudado. A situação permaneceu assim por muito tempo, sem nenhuma mudança. De repente, uma planta! Ah, agora vão se mudar, pensei. Mas em menos de uma semana a planta sumiu. Um (bom) tempo depois, os apetrechos de limpeza sumiram também, a luz começou a ficar acesa mais dias, inclusive aparecendo ligada e desligada na mesma noite. Agora se mudaram, pensei novamente. E nada de ver uma alma viva no referido apartamento - segue tão silencioso quanto o apartamento dois andares abaixo. Há um mês uma mudança radical: apareceu um varal de chão na sacada, com um pano de chão pendurado. E assim segue até hoje. Porém, também notei que algumas vezes a porta estava fechada, em outras, aberta. Sinal de vida humana pisando ali!
Ontem à noite, diante da luz do banheiro acesa e do vapor no vitrô sempre fechado, resolvi deixar a timidez de lado e ficar encarando a maldita sacada, ver se aparecia alguma pessoa. Lembrei que quando adolescente dizíamos que se olhássemos insistentemente para a nuca do garçom ele se incomodava e vinha nos atender. Sempre deu certo, desde que tivéssemos certa paciência e erguêssemos o braço quando ele se virasse, às vezes duas ou três vezes. Fim da divagação pertinente. Como disse, a luz do banheiro estava acesa, logo, a pessoa seria obrigada a passar pelo trecho que consigo ver. Fiquei ali, de gaiato, um bom tempo, disposto a aguentar o tempo que fosse. Pois foi então. Algo me chamou a atenção. Era Calvin, meu gato-jamanta, se esfregando na minha perna e miando atrás de carinho. Olhei para ele, disse silenciosamente não, e voltei a olhar para o studio de cima. A luz do banheiro já estava desligada.
Fosse uma casa antiga, e este poderia ser um texto de terror. Mesmo se fosse um prédio velho poderia dar essa interpretação: em algum apartamento de A vida: modo de usar, do Perec, há o fantasma de alguém que ali residiu e morreu, e que volta para assombrar os vizinhos com atos disparatados, algum parente do Fantasma de Canterville. Mas sendo novo, nem deu tempo para as assombrações acharem o endereço, já que, pelo que vi no Instagram, assombrações e quetais não podem usar o maps; pensei que poderia ser o Dalton Trevisan tentando vida nova como anônimo em SP, depois de ter plantado a notícia de sua morte, mas não faz nenhum sentido para o Vampiro de Curitiba sair de Curitiba, ainda mais com a idade que tinha; quem sabe algum terrorista húngaro, como no porão de Rubem Braga; algum foragido da polícia federal ou, mais emocionante, um espião vindo do futuro para me espiar, ver qual lógica paraconsistente eu segui a ponto de me tornar o que hei de me tornar em breve (e que nem eu sei, antes que me perguntem)?
Decidi parar de divagar e pôr os pés no chão, encarando a coisa do jeito mais rasteiro e razoável possível. Primeiro premissa: o apartamento é novo, todo tecnológico; segunda premissa: ninguém mora no apartamento; terceira premissa: vez ou outra aparece não sei se o inquilino (seria um quarto para encontros íntimos, como em A insustentável leveza do ser?) ou alguém para fazer faxina (por isso a porta aberta às vezes); conclusão lógica: nada de fantasmas e conto de terror, certamente é apenas uma Alexa se sentindo abandonada, tentando chamar a atenção.
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