Meu sobrinho veio passar o sábado comigo, a pedido do próprio, que me acha legal – para infelicidade de meu irmão e minha cunhada. Já contei alhures que ele estuda numa escola de metodologia Wondermort, e por isso os pais o privam de muitas coisas – não que precisem ensinar a ser um canalha super adaptado ao mundo cão laboral em que vivemos, mas acreditar que criar uma criança alienada do mundo vai lhe dar repertório quando crescer não me parece muito razoável. Não sei bem a idade de meu sobrinho, suponho que tenha algo entre sete e doze anos, mas não é certeza – eu achava isso há uns dois anos, mas pelo visto ele era mais novo.
Pois fomos ao teatro, ver uma peça infantil que muito lhe agradou – houve consentimento de meu irmão, que deve ter analisado bem a sinopse, antes de autorizar -, tanto que o moleque ficou matraqueando sobre o espetáculo por muito tempo. Depois do almoço viemos para minha casa, fazer hora e jogar algum jogo de tabuleiro permitido até que o sol arrefecesse um pouco (porque anunciaram que a onda de calor havia passado, mas esqueceram de avisar que só a onda passaria, o calor persistiu) e fôssemos ao parque.
Nesse ínterim, eis que contra todas minhas admoestações, Carnegie, o Arauto do Apocalipse, me manda uma mensagem de trabalho no whatsapp. É de conhecimento público e notório que se tem uma coisa que me causa ira é receber mensagens de trabalho fora do expediente; que dizer, então, em pleno final de semana – já sacrifico quarenta horas semanais de minha vida, o pouco tempo que me resta quero utilizá-lo para mim, nem que seja para passá-lo com meu sobrinho. Acho que desta vez me fiz entender quando perguntei para ele se gostaria de receber uma figurinha do Corinthians às onze horas da noite de domingo, depois do Palmeiras tomar uma goleada do Timão em pleno Parque Antártica.
Diante de tão inoportuna mensagem, não tive como não conter a exclamação “caralho!”, dita assim, clara e límpida, na frente de meu sobrinho puro e ilibado. Consegui me conter a tempo de seguir enfileirando palavrões, mas ele ouviu e se animou com a palavra, parece que a sonoridade lhe agradou:
Caralho! Caralho! Caralho! Que significa caralho, tio Sérgio?
Não falei caralho.
Falou, sim.
Não. Foi garalho, com g de grilhões, respondi – nessas horas sempre gosto de ampliar o vocabulário do menino, ainda que ele raramente me pergunte o que significa a palavra que ensino.
E o que significa garalho?
Quer dizer “Que coisa”. Recebi uma notícia aqui, e ao invés de dizer “que coisa”, acho mais fácil e mais bonito falar “garalho”.
Vi que havia sido infeliz na minha colocação e complementei:
Mas você, que é criança, melhor seguir dizendo “que coisa”, está bem?
Convenhamos, não menti de todo: os linguistas vão dizer que vale o contexto da palavra mais que seu significado cru. Ele anuiu, se deu por conformado e seguimos nosso sábado.
Na quarta-feira meu irmão me ligou. Quando isso acontece, sei que lá vem bronca.
Escuta aqui, Zé Bobão (sim, meu irmão me chama de Zé Bobão quando está muito puto comigo, era como ele me tirava do sério quando éramos criança), já não pedi trocentas vezes para você não falar palavrão perto do meu filho?
Palavrão?, perguntei como quem não está entendendo o motivo de tudo aquilo.
Sim! E ainda ensinou ele errado!
Como assim?!
Não seja cínico! O menino agora está sofrendo bullying na natação. Estão chamando ele de garalhinho.
Como assim?! Por que isso?!
Aconteceu qualquer coisa na aula, e ele soltou um sonoro “garalho”. Ao repetir uma segunda vez, tentaram corrigi-lo e ele insistiu - ainda insiste - no tal garalho. Se fosse ensinar um palavrão, ensinasse logo certo, caralho!
Espero que ele não esteja aí perto. Ou você está querendo ensinar palavrão para ele?
Ele está na aula. E pare de dar uma de desentendido!
Claro, resumi um pouco o sermão do meu irmão, porque ele é bastante prolixo quando diz respeito a me dar broncas envolvendo seu pimpolho (espero que seja um pouco mais breve com a criança, porém não creio). Nesse meio tempo, consegui pegar o dicionário e ver se não existia mesmo a palavra garalho. Havia “garalhar”, que significa “gralhar”. Não ajudou muito, mas gralhar, além de ser barulho de gralhas, tem como sentido figurado “tagarelar”. Ah, salvador pai dos burros!
Escuta aqui, eu falei e quis falar garalho, mesmo, nunca pensei em caralho!
Ah, conta outra!
É sério. Ele voltou do teatro todo empolgado, não te contou?
Sim, gostou muito da peça. Não fuja do assunto.
Então, veio que veio tagarelando, e eu disse “que garalho”, “que tagarela”, do verbo garalhar.
Você quer que eu acredite nessa lorota idiota?
Pois busque no dicionário.
Ele fez a busca e teve que dar o braço a torcer, ao menos eu achei que seria assim - nessa hora também fui puro e ilibado.
Certo, existe garalho. E por que você deu o significado errado da palavra? Quando perguntei se ele sabia o que significava garalho, ele disse que era “que coisa”.
Que coisa! Sério? Acho que me entendeu errado. A certa altura eu falei, “Que coisa, garalho”.
Ele disse que você explicou que garalho significava “que coisa” de modo mais bonito.
Ainda tentei desconversar, entretanto, no fim, tive que assumir o caralho involuntário. Ele não me deu razão para a vocalização do referido vocábulo, apesar de eu tê-la. E ainda emendou mais um sermão - haja paciência, o pai me enche mais que o filho! Próxima vez que me escapar um palavrão, preciso consultar o dicionário antes, para a desculpa colar melhor.
17 de março de 2025
Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas
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