Fui assistir este fim de semana à peça “Agora e na hora de nossa hora”, de Eduardo Okamoto, do grupo Matula Teatro. O grupo é um dos muitos de Barão Geraldo (o distrito da Unicamp), um dos pólos cênicos do Brasil, que se desenvolveu ao redor do Lume. O texto, inspirado no trabalho do autor no “Projeto Gepeto – Transformando Sonhos em Realidade”, que atua junto a crianças em situação de risco psicossocial (percebe-se claramente no texto a colagem de frases e idéias de crianças nessa situação), no livro “Macário” do mexicano Juan Rulfo e na chacina da Candelária, conta a história de um garoto de rua, o Pedrinha, que presenciou a chacina.
O espetáculo não gira em torno da chacina da Candelária: ela é apenas um gancho para trazer à tona o(s) problema(s) das crianças que vivem na rua. O autor conseguiu captar bem várias nuances dessas crianças: uma hora é o animal que nós de classe média costumamos enxergar, grunhindo feito um porco enquanto come, outra é uma criança que brinca inconseqüentemente de bater a cabeça no chão para “ouvir o tambor”; uma hora canta o hino do Comando Vermelho, outra o hino da igreja.
Mas o que me chamou muito a atenção foi a incapacidade da criança em lidar com a própria situação e com o que ocorre em seu entorno: o medo e a passividade de quem ainda não se revoltou contra a condição da vida que leva.
Pedrinha dorme em cima de uma banca de jornais, para os pecados não conseguirem alcançá-lo, e para não ser apedrejado enquanto dorme. Procura evitar sentir em que parte do corpo passeiam as baratas para conseguir dormir. Um dia, depois de fumar crack, vai da Candelária à Central, onde “tem alemão”, e precisa sair correndo para não apanhar. Em nenhum momento esboça qualquer revolta. Mesmo com a chacina, não há qualquer revolta contra os policiais. A única coisa contra a qual se revolta são os ratos, que não deixam ninguém dormir, nem os moradores de rua, nem os policiais. E é por causa dos ratos que os policiais às vezes saem à caça dos meninos de rua: os culpados pela chacina são os ratos.
Levando em consideração que quem escreveu a peça tem grande experiência com tais crianças, e não deve, portanto, se tratar de uma mera abstração do autor de como seria uma criança de rua, fica a pergunta, ou melhor, o tapa na cara: o que estamos fazendo com as nossas crianças? Diminuição da idade penal? Sem dúvida a criança que mata por causa de um tênis já perdeu sua inocência de criança, já não acha que o problema da cidade são os ratos que não deixam ninguém dormir, já não acha que é normal comer quando tem comida, passar fome quando não tem; mas por que nós deixamos chegar a esse estágio? Serão essas crianças más por natureza? Se assim for, nada mais nos resta que matá-las em série. Mas a chacina da Candelária chocou a todos, e é a prova que de que nós temos compaixão por essas crianças, nos preocupamos – na medida do possível – com elas. Será? No Rio de Janeiro são assassinados 450 crianças de rua todos os anos, são mais de quatro chacinas da Candelária por mês. Mesmo as 64 crianças sobreviventes da Candelária, quem se ocupou delas? Pelo menos 40 dessas crianças também foram assassinadas. Enquanto isso, nós, nas nossas confortáveis poltronas, de frente para nossa tevê 33 polegadas, falamos, na melhor das hipóteses, “que absurdo!”, quando não comemorando que esses bandidos tenham sido mortos. Vale lembrar a frase do secretário de segurança do estado do Rio, Anthony Garotinho, sobre a rebelião em Benfica: 30 presos foram assassinados e, INFELIZMENTE, um agente penitenciário também (não sei exatamente a frase, mas sei que o infelizmente veio antes do agente penitenciário somente). Não, senhor Garotinho, infelizmente foram assassinadas 31 pessoas, das quais 30 se encontravam em regime de reclusão. Alguém pode argumentar que trata-se de um caso diferente, os presos de Benfica já eram marmanjos, não tinham mais conserto. Sem entrar na questão se os presos têm conserto ou não, apenas lembro: um dia esses marmanjos também foram crianças que acreditavam que os ratos eram os culpados de tudo. Um dia eles perderam a inocência, quem estava ao lado deles?
PS: Teatro do absurdo: 147 de 190 presos fogem pela porta da frente de uma delegacia de São Paulo. A capacidade da cadeia era de 30 pessoas.
Campinas, 07 de junho de 2004
O espetáculo não gira em torno da chacina da Candelária: ela é apenas um gancho para trazer à tona o(s) problema(s) das crianças que vivem na rua. O autor conseguiu captar bem várias nuances dessas crianças: uma hora é o animal que nós de classe média costumamos enxergar, grunhindo feito um porco enquanto come, outra é uma criança que brinca inconseqüentemente de bater a cabeça no chão para “ouvir o tambor”; uma hora canta o hino do Comando Vermelho, outra o hino da igreja.
Mas o que me chamou muito a atenção foi a incapacidade da criança em lidar com a própria situação e com o que ocorre em seu entorno: o medo e a passividade de quem ainda não se revoltou contra a condição da vida que leva.
Pedrinha dorme em cima de uma banca de jornais, para os pecados não conseguirem alcançá-lo, e para não ser apedrejado enquanto dorme. Procura evitar sentir em que parte do corpo passeiam as baratas para conseguir dormir. Um dia, depois de fumar crack, vai da Candelária à Central, onde “tem alemão”, e precisa sair correndo para não apanhar. Em nenhum momento esboça qualquer revolta. Mesmo com a chacina, não há qualquer revolta contra os policiais. A única coisa contra a qual se revolta são os ratos, que não deixam ninguém dormir, nem os moradores de rua, nem os policiais. E é por causa dos ratos que os policiais às vezes saem à caça dos meninos de rua: os culpados pela chacina são os ratos.
Levando em consideração que quem escreveu a peça tem grande experiência com tais crianças, e não deve, portanto, se tratar de uma mera abstração do autor de como seria uma criança de rua, fica a pergunta, ou melhor, o tapa na cara: o que estamos fazendo com as nossas crianças? Diminuição da idade penal? Sem dúvida a criança que mata por causa de um tênis já perdeu sua inocência de criança, já não acha que o problema da cidade são os ratos que não deixam ninguém dormir, já não acha que é normal comer quando tem comida, passar fome quando não tem; mas por que nós deixamos chegar a esse estágio? Serão essas crianças más por natureza? Se assim for, nada mais nos resta que matá-las em série. Mas a chacina da Candelária chocou a todos, e é a prova que de que nós temos compaixão por essas crianças, nos preocupamos – na medida do possível – com elas. Será? No Rio de Janeiro são assassinados 450 crianças de rua todos os anos, são mais de quatro chacinas da Candelária por mês. Mesmo as 64 crianças sobreviventes da Candelária, quem se ocupou delas? Pelo menos 40 dessas crianças também foram assassinadas. Enquanto isso, nós, nas nossas confortáveis poltronas, de frente para nossa tevê 33 polegadas, falamos, na melhor das hipóteses, “que absurdo!”, quando não comemorando que esses bandidos tenham sido mortos. Vale lembrar a frase do secretário de segurança do estado do Rio, Anthony Garotinho, sobre a rebelião em Benfica: 30 presos foram assassinados e, INFELIZMENTE, um agente penitenciário também (não sei exatamente a frase, mas sei que o infelizmente veio antes do agente penitenciário somente). Não, senhor Garotinho, infelizmente foram assassinadas 31 pessoas, das quais 30 se encontravam em regime de reclusão. Alguém pode argumentar que trata-se de um caso diferente, os presos de Benfica já eram marmanjos, não tinham mais conserto. Sem entrar na questão se os presos têm conserto ou não, apenas lembro: um dia esses marmanjos também foram crianças que acreditavam que os ratos eram os culpados de tudo. Um dia eles perderam a inocência, quem estava ao lado deles?
PS: Teatro do absurdo: 147 de 190 presos fogem pela porta da frente de uma delegacia de São Paulo. A capacidade da cadeia era de 30 pessoas.
Campinas, 07 de junho de 2004