quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Até quando?

Converso com o motorista do ônibus. Trabalha de segunda à sexta das 12h30 às 23h30, mais sábado pela manhã, recebe só uma parte das horas-extras que trabalha, mas não reclama: 'tem muita gente que gostaria de estar no meu lugar; o salário é razoável, o trabalho é sossegado, não tem trânsito, não tem risco de assalto'. Final de semana, se a empresa freta ônibus para algum lugar e escala ele, tem que ir; não gosta, preferiria ficar com a família, mas não reclama. Há pouco tempo cortaram o vale-refeição, mas também não reclama: 'fazer o que? Tem gente que gostaria de estar no meu lugar'.
No ônibus para Osasco escuto duas mulheres conversando. Uma, 19 anos, criança de colo, conta do marido, que tem três empregos: 'das 6h às 8h trabalha numa academia de musculação. Até as 14h como pedreiro, e das 15h às 23h como porteiro'. Imagino que não deva morar do lado dos empregos, se assim fosse, na melhor das hipóteses fica em casa oito horas por dia, em que deveria dormir, comer, tomar banho, fazer a barba, e outros cuidados consigo. Quanto tempo sobra para aproveitar a mulher e o filho? Desconfio que pouco, mas sempre que a mulher fala do marido e dos seus empregos, em nenhum momento surge qualquer indício de revolta ou indignação, como se trabalhar 16 horas por dia fosse algo natural em pleno século XXI. E o pior é que é.
Não conversei com as duas pessoas à respeito, mas desconfio que se eu falasse de revolução ou crise teriam medo: tão mal andam, mas ainda tem medo de perder o pouco que tem. E o sonho de que um dia poderá ser melhor? Devem ter, ou então não pensam nisso. Até quando vão resistir sem reagir?

Campinas, 02 de dezembro de 2004

domingo, 28 de novembro de 2004

O que esperar do Brito como diretor científico da Fapesp

Recentemente o atual reitor da Unicamp, o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, foi escolhido pelo governador Geraldo Alckmin como diretor x da Fapesp. Não sei sobre os outros nomes da lista de postulantes ao cargo enviada ao governador, mas sem dúvida alguma a escolha do Brito é uma temeridade àqueles que defendem a universidade pública brasileira, em tudo o que a instituição universidade abrange, e no que pode haver de mais público no ensino superior brasileiro.

Escutando a conversa numa mesa ao lado, em uma cantina da Unicamp, um professor do instituto de economia explicava o porquê de se deixar o cargo de reitor de uma das principais universidades brasileiras pelo de diretor de uma agência de fomento à pesquisa. As razões principais enumeradas pelo professor são: o tempo de permanência no cargo de diretor científico da Fapesp não se restringe a quatro anos; e o ocupante de tal cargo é quem dá as diretrizes das bolsas oferecidas pela Fapesp, a principal agência de fomento à pesquisa do Brasil. É um cargo de menor visibilidade na imprensa, mas sem dúvida muito mais poderoso nos subterrâneos da academia.

Analisando a gestão do Brito na reitoria da Unicamp podemos ter alguma idéia de como poderão ser as diretrizes da Fapesp nos próximos (sombrios) anos.

Brito fez valer na Unicamp o princípio constitucional de que a universidade é um local de ensino. Segundo o filósofo Fausto Castilho, ao comentar esse princípio norteador das universidades brasileiras, ressaltou que esse princípio se encontrava um pouco atrasado frente àquele que norteia as universidades francesas e alemãs, por exemplo, em que as universidades são locais de estudo. Pode parecer mera picuinha lexical, mas entre ensino e estudo a diferença é abismal. É certo que esse atraso, de cerca de dois séculos, não é tão grande quando comparado à maturidade intelectual de muitos “intelectuais” brasileiros a seus pares estrangeiros. Com base nesse princípio, para Brito, tudo o que foge do tripé sala de aula-laboratório-artigos para revistas é desperdício de tempo e dinheiro público. Neste aspecto, portanto, não precisamos nos preocupar, pois não devemos ter nenhuma surpresa, no máximo o aprofundamento das exigências que a Fapesp já vinha fazendo para a concessão de bolsas.

Esse aprofundamento, por sinal, deve vir mesmo. Se hoje alunos que têm uma reprovação qualquer no seu histórico escolar encontram enormes dificuldades para conseguir bolsa (pouco importa que seja um aluno de artes cênicas que um dia resolveu fazer cálculo I e reprovou), o que esperar quando entra alguém que tem a capacidade de vincular as bolsas de auxílio a alunos carentes da Unicamp (como bolsa-alimentação, bolsa-trabalho, bolsa-moradia) ao “desempenho” acadêmico, medido sob a forma de nota média (sendo que não é algo tão incomum a “perseguição” de professores a alunos, que pode resultar em reprovações ou notas baixas, independente do real aprendizado do aluno).

A visão estreitamente gerencial, técnica e positivista do senhor Brito também enche de desesperança o pessoal da ciências humanas - como o escriba -, cujos trabalhos não costumam possuir gráficos nem dados empíricos quantificáveis, de que não será tão cedo que a área será valorizada e estimulada.

Por fim, é de assustar a concepção que o senhor Brito possui do que seria algo público. Tudo leva a crer que ele acredita que as empresas são as legítimas representantes da sociedade civil, e por estarem em contato com a realidade do país, tem sempre em mente a pesquisa visando sanar os problemas por ela detectados. Claro que isso não é problema, afinal todos sabemos que o capital é bonzinho, sempre que sobra dinheiro ele dá gratuitamente e sem esperar qualquer contrapartida àqueles que podem melhorar o conforto dos seus clientes, ou abrir novos mercados consumidores.

Não foi ele quem começou, mas sem dúvida a cara de puteiro que a Unicamp possui hoje é obra dele. Na Unicamp hoje quem tem dinheiro pode fazer o que entender. Salas de aulas adotadas por empresas e de acesso restrito, como a sala Ajinomoto e a sala Microsoft (curiosamente a Unicamp reluta em utilizar programas livres, como o Linux, apesar de ter um grupo forte que mexe com isso dentro da universidade). Tenda de revenda de carros no pátio da universidade. Tenda de venda de seguros e de consórcios. Os bancos, então, têm o Brito como grande aliado (ou será o contrário?). Agências de bancos privados no campus, muito bem localizados (Real, Santander e agora Itaú), sendo que bancos estatais ou não possuem agência no campus (como a Caixa Econômica Federal), ou estão em locais menos nobres (como a Nossa Caixa). A carteira estudantil é fruto de uma parceria entre Unicamp, Banco Santander e Visa - inclusive era para ter a logomarca das duas empresas, não fosse a pressão da comunidade universitária, em especial do movimento estudantil. Semana passada, por sinal, era difícil andar pelo campus sem ser abordado por alguém do Banco Real, do Bando Santander ou da Credicard, querendo vender seus produtos. Estavam mais à vontade do que nas próprias agências, todos numa boa, sem serem incomodados por nenhum dos seguranças da universidade. Ocorreu o contrário quando, semestre passado, eu quis distribuir panfletos chamando voluntários para um grupo de alfabetização de adultos fora da área permitida.

Para aqueles que acham que estou exagerando, que o Brito na Fapesp não será assim, vale ler a entrevista dada ao “Jornal da Unicamp”, na página
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2004/ju274pag03.html, em que o futuro diretor científico enumera os três pilares da pesquisa científica em São Paulo, a formação de recursos humanos, a pesquisa acadêmica e a pesquisa empresarial, a qual, segundo a visão do senhor Brito, é deixada em segundo plano pela Fapesp, e que ele pretende corrigir esse equívoco, “articulando” os três pilares, dando uma “pequena” ajuda à pesquisa empresarial, enfim, liberando a grana pra quem sabe fazer grana com ela; afinal, não dizia Marx que o objetivo do capital era fazer capital? Temos com Brito na Fapesp as idéias do livro I do Capital num posto de enorme importância!

Uma amiga minha tem como mote que para o pior não há limites. Paulo Renato tem se mostrado até agora imbatível nos seus afazeres institucionais ligados à educação. Brito mostra disposição a superar o ex-reitor da Unicamp, e eu vou ter que acabar mudando minha opinião e concordando com a minha amiga. Será a vocação da Unicamp produzir incompetentes para cargos públicos de relevância (não que o Paulo Renato e o Brito sejam incompetentes no que se propuseram a fazer, mas o são no que se espera de pessoas que ocupam cargos da relevância que eles ocuparam ou ocuparão)? 

Perdoem-me o palavrão, mas estamos fudidos!



Campinas, 28 de novembro de 2004