Dia desses eu conversava com uma amiga. Falávamos das férias. Ela contou o que pretendia fazer tão logo começasse as suas, ao que comentei que ela realmente gostava tal coisa (não vem ao caso o que). Sua resposta foi: “preciso por isso nas minhas paixões, no Orkut”. Achei curiosa sua observação. É curioso o papel que a tecnologia tem alcançado como mediador entre as pessoas na nossa sociedade.
Claro que essa mediação não é simplesmente uma troca de um meio (a conversa) por outro (a apresentação no Orkut, neste caso), mas tráz consigo diversas conseqüências. A conversa com minha amiga me remeteu a dois livros: “Videologias”, da psicanalista Maria Rita Kehl e do jornalista Eugênio Bucci, e “A ideologia na sociedade industrial”, do Herbert Marcuse.
O contato cara-a-cara tem perdido espaço na nossa sociedade (falo aqui especificamente das classes médias pra cima), sendo substituído pelos contatos virtuais: freqüentamos salas de bate-papo no lugar de ir a um barzinho; usamos ICQ, MSN para conversar com amigos, ao invés de ir na casa deles; mensagens pelo Orkut poupam-nos tempo e do esquecimento de certas coisas que tínhamos a dizer às pessoas. Um segundo estágio das mudanças trazidas pela televisão, assunto abordado no primeiro livro que citei: a política se transferiu das reuniões de bairro para os comerciais de trinta segundos, com isso perde-se muito do debate, do diálogo, fonte do conhecimento e da aceitação do próximo. As próprias comemorações, grande eventos, hoje são transmitidos em pela televisão e muitos sentem participarem de tais eventos por estarem acompanhando-os ao vivo em sua casa. Com a internet esses contatos, já rareados pela mediação da televisão, passam a acontecer em situações similares aos contatos cara-a-cara, mas sem muito de seus inconvenientes. Por exemplo, é fácil numa sala de bate papo chegar para alguém e passar uma cantada. Se não der certo, tudo bem, parte-se pra outra, até achar alguém que lhe dê atenção. Tudo muito fácil, rápido e prático, sem perda de tempo com troca de olhares, de esperar o momento certo, de esperar o amigo ir dar uma volta pra você poder chegar na pessoa.
Com o Orkut ocorre algo semelhante, mas um pouco mais aprofundado. Vemos a foto da pessoa, clicamos para ver sua descrição e, dependendo de como ela se apresentar, dos seus gostos, das suas comunidades, “investimos” nela ou partimos pra outra. Daqui remeto ao fechamento do universo da locução, que Herbert Marcuse fala no livro supracitado. No exemplo do livro, o autor cita as reivindicações por melhores salários, que individualizadas e analisadas particularmente, sanam o problema mais imediato de cada funcionário e desarticula suas reivindicações mais abstratas (como melhores condições de trabalho, por exemplo) e a própria noção de grupo. Com o Orkut a pessoa já se descreve, diz do que gosta, do que não gosta, e apesar da liberdade em escrevê-lo com as próprias palavras, fecha-se seu “universo de locução”, no caso, mais especificamente, a pessoa ganha contornos bem definidos de como ela é, e deixa de ser aquilo que ela não descreveu. A descrição do Orkut passa a falsa impressão de que se conhece o suficiente da pessoa, ao mesmo tempo que esta é bastante reduzida e perde muito do encanto, dos mistérios, advindos justamente de não se saber como ela é.
Imagino se Proust, ao invés de ter cruzado com Albertine na praia, trocado olhares, forçado um encontro, trocado palavras desajeitadas, conversado com ela e suas amigas, até se decidir que era dela que gostava tivesse achado a moça no Orkut. Viria do que ela gosta, do que não gosta, o mesmo das suas amigas, e mandaria um recado para aquela que julgasse mais interessante. Talvez o “perfil” de Albertine não lhe tivesse causado boa impressão. Recebida uma resposta da moça escolhida, poderiam combinar um encontro, eles já saberiam sobre o que conversar, e todo o trabalho de aproximação e se conhecerem não existiria. Também não existiria uma das principais obras da literatura mundial. Ou caso Proust ainda assim tivesse tentado escrevê-la seria uma obra muito pobre, principalmente no que trás de profundo sobre o ser humano.
Pato Branco, 07 de janeiro de 2005
Claro que essa mediação não é simplesmente uma troca de um meio (a conversa) por outro (a apresentação no Orkut, neste caso), mas tráz consigo diversas conseqüências. A conversa com minha amiga me remeteu a dois livros: “Videologias”, da psicanalista Maria Rita Kehl e do jornalista Eugênio Bucci, e “A ideologia na sociedade industrial”, do Herbert Marcuse.
O contato cara-a-cara tem perdido espaço na nossa sociedade (falo aqui especificamente das classes médias pra cima), sendo substituído pelos contatos virtuais: freqüentamos salas de bate-papo no lugar de ir a um barzinho; usamos ICQ, MSN para conversar com amigos, ao invés de ir na casa deles; mensagens pelo Orkut poupam-nos tempo e do esquecimento de certas coisas que tínhamos a dizer às pessoas. Um segundo estágio das mudanças trazidas pela televisão, assunto abordado no primeiro livro que citei: a política se transferiu das reuniões de bairro para os comerciais de trinta segundos, com isso perde-se muito do debate, do diálogo, fonte do conhecimento e da aceitação do próximo. As próprias comemorações, grande eventos, hoje são transmitidos em pela televisão e muitos sentem participarem de tais eventos por estarem acompanhando-os ao vivo em sua casa. Com a internet esses contatos, já rareados pela mediação da televisão, passam a acontecer em situações similares aos contatos cara-a-cara, mas sem muito de seus inconvenientes. Por exemplo, é fácil numa sala de bate papo chegar para alguém e passar uma cantada. Se não der certo, tudo bem, parte-se pra outra, até achar alguém que lhe dê atenção. Tudo muito fácil, rápido e prático, sem perda de tempo com troca de olhares, de esperar o momento certo, de esperar o amigo ir dar uma volta pra você poder chegar na pessoa.
Com o Orkut ocorre algo semelhante, mas um pouco mais aprofundado. Vemos a foto da pessoa, clicamos para ver sua descrição e, dependendo de como ela se apresentar, dos seus gostos, das suas comunidades, “investimos” nela ou partimos pra outra. Daqui remeto ao fechamento do universo da locução, que Herbert Marcuse fala no livro supracitado. No exemplo do livro, o autor cita as reivindicações por melhores salários, que individualizadas e analisadas particularmente, sanam o problema mais imediato de cada funcionário e desarticula suas reivindicações mais abstratas (como melhores condições de trabalho, por exemplo) e a própria noção de grupo. Com o Orkut a pessoa já se descreve, diz do que gosta, do que não gosta, e apesar da liberdade em escrevê-lo com as próprias palavras, fecha-se seu “universo de locução”, no caso, mais especificamente, a pessoa ganha contornos bem definidos de como ela é, e deixa de ser aquilo que ela não descreveu. A descrição do Orkut passa a falsa impressão de que se conhece o suficiente da pessoa, ao mesmo tempo que esta é bastante reduzida e perde muito do encanto, dos mistérios, advindos justamente de não se saber como ela é.
Imagino se Proust, ao invés de ter cruzado com Albertine na praia, trocado olhares, forçado um encontro, trocado palavras desajeitadas, conversado com ela e suas amigas, até se decidir que era dela que gostava tivesse achado a moça no Orkut. Viria do que ela gosta, do que não gosta, o mesmo das suas amigas, e mandaria um recado para aquela que julgasse mais interessante. Talvez o “perfil” de Albertine não lhe tivesse causado boa impressão. Recebida uma resposta da moça escolhida, poderiam combinar um encontro, eles já saberiam sobre o que conversar, e todo o trabalho de aproximação e se conhecerem não existiria. Também não existiria uma das principais obras da literatura mundial. Ou caso Proust ainda assim tivesse tentado escrevê-la seria uma obra muito pobre, principalmente no que trás de profundo sobre o ser humano.
Pato Branco, 07 de janeiro de 2005