quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Bons fraseadores (Borges Saramago Mia Couto)

Voltava de São Paulo de carona e a motorista, uma guria formada em música, que trabalha com dança e tem um bom repertório de literatura, comentava da sua decepção com o filme Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles. Segundo ela, mesmo nas cenas mais fortes, o filme não conseguia causar o mesmo impacto que o livro. Foi por imaginar que eu também acharia isso que não me empolguei em assisti-lo. Ademais, ela continuou, o Saramago possui toda uma poética na escrita, possui frases lapidares, coisas que o filme não conseguiu transmitir.
Isso me fez lembrar dele e de um outro autor que considero os maiores fraseadores que conheço (o que não quer dizer muito), e a forma como parecem soltar essas frases em meio às suas narrativas. Imagino esses autores em barulhentos almoços de domingo, todo mundo falando ao mesmo tempo com todo mundo. De repente Borges dá uma breve e baixa pigarreada. A mesa não chega a fazer silêncio, mas as conversas amainam e os ouvidos atentam ao que o escritor tem a dizer. Ele então solta uma das suas frases magistrais, para deleite de todos - mesmo os que não concordam com ela - e a conversa volta a se avolumar, mais rica e animada. Diferentemente vejo Saramago nessa situação. Em meio a toda balbúrdia, o português leva o guardanapo à boca e meio sem graça, como se se tratasse de um arroto, vem uma frase maravilhosa, que muitos correm o risco de não notar, tamanha a discrição.
A conversa com a Paula (a motorista) me fez lembrar de outro bom fraseador, que há tempos pretendia reler - e que o faço agora, empolgado pela carona -, o moçambicano Mia Couto e seu livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Não sei como ele se portaria num almoço de domingo, mas para não ficar feio tanto falar de frases e não citar nenhuma, duas dele: "Os lugares não se encontram, constroem-se" e "O velho Mariano falou, argumentando tudo por extenso. Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento".


Campinas, 19 de agosto de 2009

Publicado em www.institutohypnos.org.br

sábado, 15 de agosto de 2009

Uma doutoranda em saúde pública

Confesso que encaro o preconceito como ofensa pessoal, por mais que eu não seja mulher, gay, índio, negro, judeu, nordestino ou outra minoria. Também reconheço que não sou imune a preconceitos, mas tento quotidianamente me sanar desse mau hábito. E sei relativizar o preconceito, dependendo de quem é meu interlocutor: em geral pessoas mais velhas e mais simples, por exemplo, costumam ter preconceito contra índio. Não que eu aceite, apenas não encaro como inaceitável, e não raro, dependendo da relação que tenho com a pessoa, tento contra-argumentar.

Duro é quando me deparo com um preconceituoso armado de justificativas científicas, exibindo suas credenciais acadêmicas.

Conversava eu com uma guria do penúltimo ano do doutorado em saúde pública na FCM da Unicamp. Trabalhava desde os 15 anos e dizia que sentia necessidade de se sentir útil. Claro, exigia dos outros o mesmo senso de utilidade. Eu, nessas horas, gosto da frase do Rubem Alves: útil é martelo, serrote, computador, eu sou um ser humano, tenho valor por mim mesmo. Ela torceu o nariz para o filosofeco (o depreciativo é por minha conta) despreocupado com sua utilidade.

Conversa vai, conversa vem, dentre as diversas barbaridades proferidas, defendia a esterilização das mulheres pobres. “Essas meninas de 15 anos engravidam de traficante para ter moral no morro. Esterilizadas, não se procriam e se encerra uma série de males”. Questiono se não era melhor acabar com o tráfico. “Como”. Legalização. “Não adianta”. E que tal investimento forte em educação, melhores condições de vida e de futuro? “Não funciona. O sistema é assim e melhorar a renda das pessoas leva tempo o bastante para que não surta efeito”. Pensei em sugerir câmaras de gás, ou que o cano de escape dos ônibus fossem voltados para dentro dos veículos, que tal?, mas ela se despediu antes, disse que eu era muito chato. Confesso que por isso não me senti ofendido.

Campinas, 15 de agosto de 2009


Publicado em www.institutohypnos.org.br