sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Pequenos poderes

É sábado. O ônibus que faz a linha 3.31, do terminal Barão Geraldo até a rodoviária de Campinas, deve sair às 19h17min. Um minuto antes, motorista e cobrador sobem no carro. Quando o relógio vira a hora exata o veículo já está ligado, as portas permanecem um tempo mais abertas. Dois ônibus vindos dos bairros chegam no terminal. Passageiros descem e vão correndo em direção ao 3.31. Assim que o primeiro se aproxima, o motorista fecha as portas e começa a sair. O homem ainda bate na porta. Mas há uma regra no terminal (creio que depois que um homem acabou sendo atropelado ali), de que uma vez fora do ponto, ninguém embarca. Como o sistema de transporte público de Campinas segue o modelo brasileiro, ou seja, é feito para se servir do público e não para servir o público, esses passageiros passariam agradáveis 40 minutos até o próximo 3.31.

Cena corriqueira, poderia ser sintoma de um sistema que busca certa precisão – nos horários, ao menos. Não é o caso. Um motorista recém demitido, o Francisco, do 3.25, esperava às vezes até dez minutos pelos carros vindos do centro, pois sabia do desagradável que é esperar quase uma hora até o próximo horário.

Outra cena, conversa que escuto enquanto desço a escada rolante no terminal Tietê, em São Paulo. Dois rapazes de classe média estão atrás de mim. Um deles fala, com ar de superioridade, que acha besteira esse negócio de deixar a esquerda livre para quem estiver com pressa. “Fico na esquerda, mesmo. E se o cara estiver com pressa, aponto [a escada normal] e digo: vai por ali”. Conta que uma vez fazendo isso foi empurrado por alguém, e que só não deu uma tranqueira porque “ficou com dó”.

Dou dois exemplos de desconhecidos, mas não seria difícil encontrar casos semelhantes que pratico sem me dar conta. Com a principal diferença que não me orgulho nada de tal tipo de ação.

Ao me deparar com tais situações tenho vontade de questionar o que tal pessoa tem na cabeça, o que ela ganha com esses pequenos sadismos que não acrescentam absolutamente nada à sua vida. Logo me dou conta da mediocridade que não deve ser essa vida, da pusilanimidade que não norteia sua existência. Junta-se a isso os reflexos de uma sociedade em que o poder pessoal é capaz de passar por cima da sociedade – vide os coronéis dos rincões atrasados do país, como Sarney e cia, ou mesmo os coronéis up to date do sul-sudeste avançado, como vários caciques do PT e do PSDB –, tais pessoas mimetizam em escala micro esses desmandos, como forma de se sentirem eles também importantes. Como se fazer alguém perder o ônibus equivalesse a roubar milhões de reais. Para as perspectivas de vida de tais pessoas talvez quase equivalha. Felizmente Brasília tem vagas limitadas.


Campinas, 16 de outubro de 2009.


Publicado em www.institutohypnos.org.br

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Para além da técnica

Saiu na Folha de domingo uma reportagem que promete esquentar um pouco mais as discussões entre aqueles que acham que a solução da educação está em aumentar o salário e pronto, como, por exemplo, a Apeoesp, e aqueles para quem a precariedade da educação nacional se resolve com metas quantitativas e métodos eficientes de controle e punição, como para o Paulo Renato e o PSDB e o movimento Todos pela Educação. Enquanto esses dois grupos disputam para ver quem tem mais razão e menos bom senso, eu vou falar de enfermagem.
Mais especificamente, falarei dos técnicos em enfermagem, ou melhor, técnicas – já que homens na profissão são raros, principalmente por conta do preconceito. Linha de frente no hospital no contato com os pacientes, a enfermeira, óbvio, precisa ter o conhecimento técnico da profissão na ponta dos dedos. Achar veia aplicar injeção limpar o paciente fazer inalação trocar roupa de cama ministrar remédio pôr sonda. Se não souber fazer isso não pode ser enfermeira (ao menos assim esperam os pacientes). Ocorre porém que se esse conhecimento é necessário, somente ele não é suficiente para ser uma boa enfermeira – por mais que tenha primor na técnica. Uma enfermeira precisa também saber aplicar injeção de ânimo, fazer ventilar do quarto o clima pesado de hospital, ministrar doses corretas de atenção. Umas fazem isso de maneira mais tagarela, outras mais silenciosas, porém precisam ir sempre além dos procedimentos. Em outras palavras, enfermagem exige uma técnica, mas é também uma arte: depende muito do lado humano da pessoa, de estabelecer uma relação de confiança entre ambos, de sentir qual é a do paciente e trabalhar de maneira sutil e intensiva para sua recuperação, para que o paciente saia dali o quanto antes.
Falo de técnico de enfermagem, porém um raciocínio semelhante pode ser aplicado a qualquer profissional de saúde. Como também a qualquer profissão que trata diretamente com pessoas. Políticos, administradores, burocratas e tecnocratas lidam com planilhas, números, gráficos.

Pato Branco, 08 de outubro de 2009.

Publicado em www.institutohypnos.org.br