domingo, 23 de dezembro de 2018

Popeye vai ser papai?

Sei lá por que cargas d'água me veio Popeye hoje à memória - o elo mais forte que encontrei foi rever um amigo cuja última vez o vira no chá de bebê de um amigo em comum. Popeye sequer era dos meus desenhos favoritos. Mas veio, e justo na hora do banho, quando parece que minha mente trabalha em ritmo alucinado fazendo conexões aleatórias e tendo insights fenomenais - muitos dos quais irão pelo ralo assim que eu desligar o chuveiro.
A escolha de uma marinheiro para personagem de desenho infantil não deixa de ser curioso: ainda que utilizado (como vi na Wikipedia) para propaganda de guerra durante os anos 1940, trata-se de um marinheiro civil e não militar, ou seja, a escória da sociedade: pessoas não-família (pela própria natureza do trabalho), pouco instruídas - brutas -, "pederastas" (como n'O Bom Crioulo), tatuadas - vale lembrar que até meio século atrás, além de marinheiros, apenas presidiários, mafiosos da Yakusa e povos primitivos se tatuavam. Ademais, vinha um marinheiro ensinar não apenas virilidade, mas da importância de se comer vegetais - apesar que seu espinafre soava mais um anabolizante de efeito imediato para bater nos fortões (winners?) da vida que uma salada (vi que há uma versão atual, com apito no lugar do pito e espinafre orgânico). A própria Olívia Palito, era o contrário do padrão de beleza da época (sua forma palito tornou hypster-up-to-date apenas no último quarto de século).
A lembrança que trouxe Popeye à baila, contudo, foi da música tema. Mais especificamente, da letra que, na minha infância, cantávamos a partir desse tema: "Olívia vai ter neném, Popeye vai ser papai, o Brutus vai ser titio, ô lê lê, e viva o marinheiro Popeye!" (pesquisando achei uma tenebrosa versão atribuída à Eliana que mais parece que alguém fez para queimar a imagem da apresentadora infantil, mas parece que é de verdade a versão). O que fiquei matutando no banho foi: por que diabos o viva tem que ser pro Popeye? Que ele fez demais para merecer as vivas e não a mãe, que está ali, com suas finas pernas, sustentando outro ser.
Ainda que no meu círculo de amigos os pais sejam ponta firme, dos que cuidam de verdade, trocam fralda, põe a criança para dormir, dão bronca, banho e brincam, me consta que sejam exceções à regra, predominando, entre os pais "presentes" (numa acepção bem lata), os "pais de selfie", que ficam só com a parte do brincar e mostrar pros amigos (e, não raro, xingar a mãe pro filho), isso quando não são pais-fantasmas. Ainda que esses meus amigos mereçam elogios, não me parece que mereçam vivas - tentar ser bom pai deveria ser obrigação, como tentar ser boa mãe, dentro das possibilidades e erros da paternidade e maternidade. O filho de Popeye e Olívia sequer nasceu para darmos vivas pelos bons préstimos do marinheiro de cara torta no cuidado e educação do filho. Seria, talvez, porque Popeye tinha disfunção erétil (efeitos colaterais do fumo), e mesmo sem Viagra conseguiu fecundar Olívia, é por isso o viva?
Ao fim e ao cabo, ao escrever esta crônica e saber que Popeye está politicamente correto, me questiono se além disso está prafrentex també: pacifista, defendendo causas ecológicas (como a pesca responsável), assumindo o poliamor (latente desde sempre nas suas histórias) e ajudando a cuidar do filho parido pela Olívia - independente do resultado do teste de DNA -, afinal, pai é quem cuida e ajuda a criar.

PS: ainda estou indignado em pensar que passei minha infância cantando "e viva o marinheiro Popeye" porque ele engravidou Olívia Palito...

23 de dezembro de 2018

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Pequenas lembranças em uma tarde quente

Acompanho Luis até a rodoviária da Barra Funda. Comento com ele que o calor de São Paulo destes dias me faz lembrar do título de um filme que vi quando fazia curso de espanhol, em 1995, 1996, por aí: "El aliento del Diablo". Não lembro de absolutamente nada do filme - salvo o título -, mas esse bafo seco que sopra em SP me parece digno de relatos bíblicos infernais ou dos meus piores dias em Campinas ou Ribeirão Preto. Estou vestido todo esporte, mas a roupa não é fresca para os mais de 30°C. A camisa de futebol não é dry fit ou qualquer tecido especial, é do Putaquepariuprafora!, time da faculdade, do campeonato de 2004. A calça é um pouco mais nova, dois ou três anos, do tai chi, tactel, boa para dias de chuva, pois seca rápido - quando saí de casa ameaçava chover -, para agora, me gruda nas pernas suadas. O óculos que uso não é esporte e também já tem uns anos de uso - oito, para ser mais preciso -, e grau que não me cabe mais, descobri semana passada (minha miopia regrediu 0,75 em cada olho); está todo troncho porque Libertad, minha gata, o derrubou e vários livros em cima e ela em cima de tudo. O tênis, esse sim, é novo! Tem uma semana, é mais bonito, mais confortável e - alegria do mão de vaca aqui - vinte reais mais barato que meu anterior, comprado dois anos antes (isso dá 17% de economia, não é pouca coisa!). Luis toma seu ônibus e eu vou pegar o metrô. Estou na escada rolante quando o trem chega e resolvo apressar o passo - desejo de entrar logo em um ambiente com ar condicionado e de chegar logo em casa. Ao sair da escada rolante me vem uma lembrança anterior ao meu óculos com grau a mais, à minha calça grudada na pele, à minha camisa do Puta, ao filme da aula de espanhol do professor Erivelton. Lembrança de quando estudava no Colégio das Irmãs (não era o nome oficial, mas cidade pequena autoriza essas simplificações), meus doze, treze anos, o corpo começando a crescer mais rápido do que a cabeça era capaz de atualizar a auto-percepção, e o chão visto de perto reiteradamente, o que me fazia morrer de vergonha. Pois saí da escada rolante e corri para pegar o trem. Meu tênis novo enroscou na minha calça e enquanto meu óculos e meu celular (celular flip, com vibracall, me sinto um up-to-date de 1999) deslizam pelo piso ouço "uuuufffffs" e "aaiiiis" de pessoas empáticas às dores do outro que se estatela no chão - o piso do metrô é gelado, como era o do Colégio das Irmãs. Recolho meu óculos, meu celular, confiro que minha carteira segue no bolso e retomo o trote para o trem, como se não tivesse acontecido nada, apesar das dores dizerem o contrário. Foi só quando ele fechou as portas que me lembrei de ver se minha chave de casa também estava no bolso - estava. Já no aconchego do meu lar - onde faz falta um ventilador - me certifico que um quarto de século se passou, e se o joelho direito ralado não se fez acompanhar de vergonha pela queda em público, tampouco veio sozinho: uma leve dor no ombro direito e uma baita dor nas costas ajudam a recordar minha pequena desventura nesta segunda feira de bafo infernal.

17 de dezembro de 2018