domingo, 5 de abril de 2020

Entre orações, afagos e intervenções: as movimentações das forças políticas.

Ainda que a pandemia de coronavírus force a ações urgentes dos governantes de turno, necessárias para o aqui e o agora, atropelando convicções e conveniências partidárias, os políticos não deixam de agir também visando ganhos futuros - por mais nebuloso que seja o pós-pandemia.

O coronavírus trouxe uma oportunidade impressionante para quem está no poder, ainda mais nestas plagas: é capaz de fazer até o mais medíocre parecer bem preparado: se a crise financeira de 2008 se espalhou pelo mundo de maneira muito rápida, dado o estado da arte das comunicações e do dinheiro virtual, a pandemia ainda respeita minimamente os tempos da natureza - por mais que potencializado pelo estado da arte dos meios de transporte -, e até chegar na América Latina precisou de um tempo relativamente longo, em que dava para se preparar o mínimo, e uma vez aqui, tendo já experiências de sucesso e fracasso na China e na Europa, não era preciso inventar muita coisa - como foi em 2008 -, apenas acompanhar e adaptar o que deu certo. Mendetta, tido hoje como grande homem, na verdade é alguém que fez, se muito, o básico. Na Argentina, Alberto Fernández tampouco tem inventado qualquer coisa de excepcional, mas por seguir o recomendado, tem tudo para se tornar uma grande força política dos próximos anos, basta não cometer nenhum grande erro no pós-pandemia.

Nestes Tristes Trópicos, fala-se muito do governo federal - com boas razões -, mas convém ressaltar que os governadores tampouco se prepararam a contento, preferindo confiar que o coronavírus não se espalharia da forma como o fez. Quando veio, aí, sim, salvo patéticas exceções, não hesitaram em agir conforme os protocolos internacionais mais indicados. Há um movimento que deve ser observado depois, de como o pacto federativo será posto após isto passar, visto a organização de governadores e outros atores políticos e estatais à revelia do poder executivo nacional - desde sempre hipertrofiado, mas atualmente subutilizado.

Bolsonaro, como vários analistas já levantaram, parece arriscar (alto) em duas alternativas: a primeira, na senda do terraplanismo olavista e dos empreendedores de sucesso (e dos crimes fiscais e outros, bem ao gosto das sugestões do mito), ao insistir no discurso de manter a economia funcionando, é de que a quarentena imposta pelos governadores dará resultado, a pandemia não será tão grave como pode ser, e ele teria o discurso de que tinha razão ao querer que as pessoas não parassem. A segunda, em conluio com Guedes, parte de forças de segurança e do crime organizado, das igrejas evangélicas reacionárias e das protomilícias fascistas, é a de levar o país ao caos e permitir um estado de sítio, uma ditadura - que permitiria fazer "um trabalho que a ditadura militar não fez, matando uns 30 mil". Há quem diga que ele ainda não foi apeado do poder justo por receio de levante dessa massa fascista que o apoia. Contudo, mantê-lo como chefe de Estado, mesmo sem o poder utilizar a caneta presidencial, não o imobiliza como agente performativo: suas palavras tem poder de mobilização, inclusive por conta do cargo que está investido. Esse arranjo garante que pessoas sérias tenham um controle um pouco melhor da pandemia, mas não resolve o problema político - para 2022, por exemplo.

A chamada de jejum e oração do governo, para este domingo, dia 05, bastante ridicularizado pela porção mais ilustrada da população, não é um ato inócuo, pelo contrário: em momento de desespero, em um país onde as pessoas precisam crer em forças invisíveis - que o diga não apenas o crescimento evangélico que segue pastores charlatões, mas os terraplanismos quânticos, astrológicos, constelacionais familiares, wikkas, yogers e outros que animam parte das pessoas comuns afinadas com a esquerda progressista -, ele passa a imagem de alguém humilde perante os desígnios insondáveis de deus, reforça o elo com líderes religiosos reacionários, e dá a estes uma oportunidade de maior controle sobre o rebanho: quando a fome bater à porta com mais vigor, quando a doença se abater sobre as periferias, mesmo que haja leito para todos, estará ao lado o líder religioso para lembrar que trata-se de um recado de deus - e tal líder, claro, fará o trabalho de decifrá-lo aos desesperados incautos.

O outro fato marcante da semana foi o afago de Doria Jr a Lula. O gesto é um passo além do político neofascista tucano para repaginar sua imagem política e se gabaritar ainda mais como nome de consenso (e de combate) para 2022 - se houver eleições em 2022.

Como comentei em outro texto, da peleja entre Bolsonaro e governadores, Doria Jr soube se cacifar como o grande nome do confronto: tem feito o básico, sabido divulgar isso (com ajuda da grande mídia, claro) e ainda peitou sem medo o presidente [bit.ly/cG200327]. A bandeira branca acenada para Lula o mostra como alguém que saberia superar divergências no momento de urgência, disposto a conversar e compor com todos. Para o futuro, está pronto o discurso caso PT ou a esquerda se recuse a um pacto nos termos que ele impuser: a esquerda é intolerante. Com isto não quero dizer que o gesto não seja importante, até para baixar um pouco a polarização insuflada por ele e seus colegas de extrema direita - políticos e também jornalistas, inclusive os que posam de moderados e isentos -, como reabilitar o debate político em termos racionais como legítimo.

Para além da eleição de 2022, o outro motivo para o gesto do governador paulista talvez esteja na possibilidade de não haver eleição - e então ser necessário compor uma frente democrática. A intervenção no governo feita pelos militares, com o deslocamento de Bolsonaro para "Rainha louca da Inglaterra", aliado a um arrepio legalista do judiciário, podem animar parcelas das elites a apoiar um golpe latino americano clássico, isto é, um golpe militar, o que interromperia seus anseios políticos. Certamente, se esse cenário não avançar e voltarmos ao que era antes - um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo -, o político não levantará a voz para defender o PT da cassação de seu registro, por exemplo.

Por seu turno, Ciro Gomes parece um dançarino de valsa: dois pra lá, dois pra cá. Quando parece que pode se reabilitar como voz do campo progressista, como no episódio da retroescavadeira antifascista protagonizado pelo seu irmão, que lhe dava até um álibi para o retiro em Paris no segundo turno de 2018, volta a deixar o ressentimento pessoal se sobrepôr a qualquer interesse maior: seu comentário sobre Lula na entrevista à revista Carta Capital mostra que ele pode ser alguém bem preparado, mas sua mediocridade pessoal se sobrepõe ao homem público. Já Lula tem se mantido discreto, o problema é a Luladependência do PT e das esquerdas, que não ocupam o palco livre - para agradecimento de Doria Jr.



05 de abril de 2020

sexta-feira, 27 de março de 2020

Sinais da articulação do fascismo bolsonarista

Durante o dia de ontem ouvi por três vezes gritos de "vai trabalhar" ao longe. Estranhei. Imaginei que fossem ecos do discurso do presidente nos operários de uma obra aqui perto: subcidadãos sem direitos, ressentidos com os "privilegiados" que podem fazer quarentena e resguardar a si e a sociedade. À noite, assistindo ao Nassif na TV GGN, passo a desconfiar de que fosse a versão paulistana das caravanas que tem pressionado a volta à "vida normal" pelo país. Nassif hoje comenta que a fala do presidente serviu "para uma campanha nacional começar a mobilizar fanáticos por todo o país". Ao que tudo indica, os últimos movimentos foram todos articulados.

Primeiro começam a pipocar vídeos de empresários de sucesso, alguns "acima de qualquer ideologia" (como o fake dono do Giraffas, um playboy desautorizado (e demitido) pelo pai em seguida), falando que a quarentena só traz prejuízos ao Brasil e aos brasileiros, e se morrer dez mil, paciência, importante é a economia não parar; formadores de opinião "liberais", ou melhor, "acima de qualquer ideologia" se desdobram para mostrar com fatos que "não há vida sem economia" - como ironizou Marcelo Semer, faltou só citar a Bíblia: "no início era a verba". Alguns jornalistas chegaram a achar que a fala do dono do Madero - sócio do Luciano Huck, sempre bom lembrar - era um ato infeliz de alguém sem assessoria. Pelo contrário: há uma assessoria, profissional e muito bem equipada, por trás de todo esse movimento - inclusive a estratégia parece se repetir, numa dose de choque menor, nos EUA. A seguir, o discurso do presidente, falando exclusivamente para os seus, ecoando os empresários amigos e as correntes de WhatsApp. Junto, um tom nazista farsesco, patético: sua condição de super-homem, de "atleta" (por correr dos debates? Pelas incansáveis flexões de pescoço?): vão em paz e sem medo, porque o líder, que é um igual a vocês, é também imune a essa "gripezinha". As convocatórias para as caravanas certamente já estavam prontas quando o Véio Sonegador da Havan ou seus colegas de bolsonarismo soltaram seus vídeos explicando que vidas são só um número no balancete das empresas, não podem ser absolutizadas - fica a questão, posta também na internet: então, por que não matamos os 50 mais ricos e distribuímos sua riqueza, já que a economia vale o sacrifício de vidas? Por uma lógica utilitarista, é bastante sensato - o maior bem com o menor dano, no caso, de vidas, já que vida não pode ser tratada como um absoluto.

As caravanas pela volta à "vida normal" são uma demonstração da articulação das milícias de "cidadãos de bem" - ramo distinto de milicianos e crime organizado. Uma articulação ainda pequena, mas que sabe fazer barulho, ocupar espaço - e cuja possibilidade de ligação com criminosos  (como os "gigantes" do motim do Ceará) deixa no ar um clima de medo. As ameaças de morte a prefeitos e a governadores são um teste de força - como foi no Ceará. O ponto é: ainda que Bolsonaro tenha ascendência sobre as baixas patentes militares, inclusive nas polícias militares, o comando destas ainda cabe aos governadores. São Paulo, desde Alckmin, já demonstrou que sua PM é utilizada como falange, uma polícia política atenta às conveniências do governador (exemplo que me vem rápido é a repressão aos protestos contra o golpe, na PUC). Irá Doria Jr mandar investigar e reprimir com severidade os que lhe ameaçaram? Seus subordinados seguirão suas ordens?

A disputa entre Bolsonaro e Doria Jr se dá entre dois projetos de fascismo, que tentam atrair para si simpatia do capital e o apoio popular e dos diversos estratos do Establishment, da burocracia estatal (necessária para a máquina fascista funcionar). Isso mostra o quanto a esquerda oscila entre estar perdida e buscar uma estratégia de baixa intensidade. Primeiro, porque ainda é extremamente Luladependente: as lideranças progressistas pós-Lula ou ainda estão verdes (Boulos), ou são destemperadas (Ciro), excessivamente conciliadoras (Dino) ou diminutas para a tarefa (Haddad e Freixo). Os governadores do campo, cientes da urgência do momento, preferiram se centrar em achar soluções e evitaram partir para o confronto, diferentemente de Doria Jr, que acabou por capitanear um movimento de racionalidade frente o "estado suicidário" (como explica Safatle em seu texto publicado na n-1 Edições, ou em seu curso "psicologias do fascismo", disponível no Academia.edu) que Bolsonaro e Guedes tentam implementar. Com isso, o fascista tucano abduziu muitas das bandeiras típicas das esquerdas.

Não se tratava de ir para um tudo ou nada, mas de marcar claramente uma posição. Burocratizada, a esquerda não o fez. Após a guerra contra Bolsonaro e o coronavírus, outra batalha entrará em disputa, contra um fascismo capaz de ir além da base hidrófoba do bolsonarismo - precisamos desde já pensar em estratégias e começar a pô-las em ação.



27 de março de 2020