Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo?
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido.
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro).
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.
15 de julho de 2020