quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Sextou!

Há entre meus colegas de trabalho uma candura das sextas-feiras que me comove. Sei que esse sentimento de sextou tem a mesma originalidade que no fim da década de 1980, início da de 1990, havia nas famílias que corriam aos supermercados no primeiro sábado depois de receberem o salário, para fazer as compras do mês - cada época com suas alegrias sui generis (apesar que estamos num revival daqueles tempos)...

No fim de expediente de quinta já há um ar diferente em toda sala - uma expectativa quase infantil pelo dia de amanhã -, e na sexta adentram já com outro espírito, radiantes, como se o que se desenhasse para começar dali oito horas e encerrar menos de quarenta e oito horas depois fosse algo mágico e único.

Fingem não saber que é só mais um fim de semana curto e banal, em que os bem organizados conseguirão acavalar atividades para aproveitar o tempo, enquanto os esgotados vão vê-lo passar na velocidade inversa do que foi a semana de labuta. Sair à noite, passear no parque, caminhar pela Paulista no domingo, comer fora, praticar algum esporte, assistir a algum filme ou a um espetáculo ao vivo, encontrar amigos, ler: a lista de opções para um fim de semana é longa e não vai dar para fazer nem metade. E a coisa piora se se tiver a necessidade de preparar o almoço da semana, fazer a faxina, pôr em dia o sono da semana - e do fim de semana também, caso saia, ainda mais quando a idade já não é mais de vinte anos -, fazer as aulas atrasadas da faculdade. Mas ainda assim gritam sextou, como se fosse uma alforria - sendo que é só um leve alívio nos grilhões, talvez...

Ignoram, antes de tudo, que sexta-feira é o dia útil mais próximo da segunda-feira e da semana que muito em breve começará e engolirá as energias ao longo de cinco arrastados dias de trabalho, como sempre faz. Ignoram que dali quarenta e oito horas será domingo à noite com toda a melancolia do tempo que passou sem ser aproveitado em sua plenitude e que em doze horas o tempo tornará a passar alheio aos seus desejos, que voltarão a ser devorados por esse monstro que povoa a sociedade atual, cruzamento de Chronos com Sísifo.

Quarenta e oito horas não dá tempo para dar uma volta ao mundo, sequer! E estou falando de viagem de avião em vôos comerciais, não em repetir a aventura de Phileas Fogg e Passepartout - para isso seria necessário ter férias de juiz e emendar com umas licenças. Se se quiser algo mais modesto, dá pra quicar em Tóquio, comer um sushi, pôr a foto no Instagram e voltar - e dormir logo!

Escrevo esta crônica na quinta. As conversas que começam a se animar com o fim do dia me lembram da véspera de natal com meus amigos, quando éramos crianças: a animação e a expectativa com o presente que receberíamos no dia seguinte. Reparo uma vez mais em meus colegas: crianças empolgadas esperando o Papai Noel, sabendo, no fundo, que ele não virá e o que os espera, de fato, é o Homem do Saco, na segunda-feira que está logo ali, na próxima esquina.


01 de setembro de 2022

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Por onde (não) andam os porcos? [Diálogos com a dança]

Entro na sala de espetáculo II do Sesc Belenzinho, para assistir a Por onde andam os porcos, com direção de Iara Izidoro e atuação de Marcela Aragão, Foster, Meujaela Gonzaga, Marcela Felipe e Iara Izidoro - os pernambucanos haviam vindo para o MITSP de 2020, mas eu não conseguira ingresso. As janelas estão abertas e por elas a cidade desponta na ruas e nos prédios, nas luzes do parque de diversões, logo ao lado, e no Edifício Platina 220, ao fundo - há um choque entre o antigo e o pós-moderno, entre a decadência do primeiro e a decadência do segundo. A distinção público-palco é sutil, pelo piso de linóleo, e ao cabo não existe: os artistas não se limitarão àquele quadrado, assim como o público que, se quiser, pode adentrar. A luz de serviço está acesa, porém a cena já corre e nela estão sete pessoas: os cinco dançarinos - duas mulheres cis, duas mulheres trans e um homem cis - e duas pessoas do público, que só descobrirei ao final que eram público. Eles correm pelo espaço, ora indo para frente, ora para trás. Às vezes param, se tocam - por pouco tempo: são pausas e toques efêmeros. Há uma banalidade, um ar desvitalizado nesse correr, nesse parar, nesse se tocar. Não há sinal de urgência, nem uma ansiedade latente: há apenas a necessidade de seguir em movimento. Nossa pressa-moto-contínuo do dia a dia, os porcos a correr por sobre as pérolas do tempo, cegos a tudo que é presente.

Quando começo a me familiarizar com esse preâmbulo, as cortinas se fecham, a cidade some, e o espetáculo entra em uma nova fase. Os dançarinos se despem e agora além do correr há o pular, os contatos tem outra intensidade, há risadas histéricas, há gestos mais densos, há o se atirar no chão - ao estilo Cena 11. A mudança, ainda que não seja brusca, leva o público de volta ao estado de estranhamento. A luz se torna mais cálida - noto que o que achei que era luz de serviço é, na verdade, a geral, a iluminar todo o espaço. É esse tom mais quente, junto a todo o gestual das cinco pessoas, que me remetem ao Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosh. Contudo, é um Jardim das Delícias sem cor, sem seres fantásticos, sem paisagem alucinógena. Há uma loucura que se pretende diversão mas é só desespero: o exuberante bacanal daquele jardim substituído pela pobreza da vida nua e desvitalizada do capital - o sem sentido e permanente crescer de mais do igual -, do correr correr correr por correr, e o parar sem de fato estancar o movimento; a nossa total falta de consciência do nosso agir e do nosso entorno, ali representada pelo palco nu, pelos atores nus. O ato termina com todos parados lado a lado, expostos para a contemplação do público, com um drone sobre suas cabeças a nos vigiar também - neste ponto, admito, senti falta de um corpo gordo para compôr o quadro.

Novamente, quando estou a me familiarizar, novo corte - desta vez abrupto -, novo jogar o público no estranhamento. É quando a “bad trip” se evidencia: a sala escura e os cinco apenas com lanternas em suas testas, de início tentando achar um caminho naquele vazio, com focos a iluminar pouco além do próprio nariz, a seguir em giro alucinado - e angustiante - por longos minutos, para terminar apenas com os rostos iluminados: seriam fantasmas ou demônios a vagar sem rumo?

Novo corte. Os dançarinos despontam por trás de placas semi-transparentes postas num canto da sala - quase como se fossem televisores. Os corpos aparecem recortados e deformados. Ao saírem de trás desse biombo, de fato estão deformados - me fez lembrar de um espetáculo da Taanteatro. Um deles traz longos braços, os demais possuem deformações menores. Do lado oposto da sala, outro dançarino pula, ri e se joga no chão, com um “equipamento” que liga seu anus ao rosto. A bad trip do Jardim das Delícias Terrenas está de volta - o homem-máquina almejado pela contemporaneidade transformado em impotente monstro de si próprio. No fim, o drone volta sobrevoar os dançarinos, até eles saírem de cena, sobrando apenas a máquina, à qual assistimos passivos e bestializados por longos minutos, até sua bateria acabar. As cortinas para a cidade se abrem, as palmas surgem hesitantes, sem saber se se trata mesmo do fim.

São Paulo, 26 de agosto de 2022