segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Desfazendo-me

Calendários de bolso de 1975 e 1996, uma nota fiscal de quando morei com minha mãe, após o falecimento de meu pai; programas de orquestra, revistas de teatro, quatro anos de minhas crônicas encadernadas; um recorte de jornal de 1972, outro da greve dos bancários de 1990, uma foto do Motorhead autografada, bilhete do meu irmão avisando que foi na casa de um amigo, declaração de imposto de renda de 1990 de meus pais, carteirinha da minha mãe da biblioteca pública de Pato Branco e a minha de meio passe em Ribeirão Preto, recorte de 1992 com dicas de investimento, cartões telefônicos, um cartão de visitas com a sutil indireta “Disfarce... e saia de fininho que você aqui não está agradando”, caderno da minha mãe de 1968, DVD sobre Jango, do filme Pachamama, do Erik Rocha, de Sonhos, do Kurosawa, do NME Aniversário (no qual achei um texto meu que não lembrava); muitos CDs de blues, CD da Swan, da Tresbella Big Doce Band, do curso de alemão que não fiz; planta da reforma da casa de Pato, feita em 2021; nota fiscal da compra da Biblioteca Científica Live, em 1971; revistas dos GPs de Fórmula 1 a que assisti, guias de viagens que nunca fiz, mapas turísticos de cidades que visitei, bilhetes de metrôs de Lisboa e Barcelona, a carta com meu rendimento no vestibular da Fuvest, quando fui aprovado em psicologia; a revista dos 500 GPs e um capa de filme fotográfico com propaganda da Fórmula 1, de 1988; livro dos recordes de 1996, partituras - algumas que acalentaram meus dias de fossa da adolescência, outras que nunca toquei -, um guia turístico de Curitiba, de 1991; “livros” que escrevi para a matéria de português quando tinha dez, onze anos; vinte anos de agendas, bottons da Del-O-Max e do Pumas, um mini transmissor FM, instruções para uma prova de datilografia, cadernos e cadernetas variados - escritos, desenhados e totalmente em branco -, livros, muitos livros (de etiqueta, de despertar interesse científico em crianças, da coleção Os Pensadores); um gibi do Cascão, alguns do Recruta Zero; o primeiro livro que eu lembro de ter querido comprar - “História dos povos indígenas - 500 anos de luta no Brasil -, cocar, arco, flechas e flauta peruana de enfeites; panfletos do show da Cássia Eller, Almanaque Abril de 1971 (com um marcador na págida do “Calendários passados e futuros”, cujo futuro termina em 1999), camisetas da época do ensino fundamental que foram promovidos a panos de tirar pó e hoje são fiapos. Me desfaço. Abro caixas aleatórias - não são os espaços reservados para lembranças - e delas saem memórias e mais memórias; minhas, dos meus pais, da burocracia, de consumo. Nesses pedaços de papel e quinquilharias, imagino o que meus pais não viveram, no que não pensavam para terem separado aquilo; lembro dos muitos que fui e de tudo o que fracassei - felizmente - para me tornar quem sou. Não são pedaços apenas do passado, mas do futuro do pretérito. Me perco em relembrar e imaginar possibilidades. “Eu sou a continuação de um sonho”, fala a atriz na peça Reset Brasil, a que fui assistir hoje. Sou a continuação dos sonhos de meus pais, meu avós, de meus sonhos de antigamente. Mas sou também os sonhos abandonados pelo caminho - até para dar espaço a novos sonhos. E sejam individuais, sejam coletivos, eu sigo sonhando - e vivendo. 


28 de outubro de 2024













quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Descapetização total instantânea [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Quando mudei para o apartamento onde atualmente resido, um dos meus maiores medos era que no terreno vazio ao lado fosse construída uma igreja evangélica. Meus avós, no interior, tiveram essa sorte, e aos finais de semana é aquela cantoria e gritaria de gente tentando acordar um Deus surdo e desdenhoso - pois pelo tanto que gritam, sinal que tudo o que têm recebido do ser supremo do bem é o desdém divino. E quando você acha que terminou, ainda tem mais de meia hora de conversação animada na rua, já perto da meia-noite.

Pois não construíram a temida igreja - o terreno foi ocupado por uma torre de trinta andares, nessa arquitetura da moda em SP, em que os apartamentos parecem galinheiros apertados. Menos mal, ainda que o novo edifício faça sombra no meu, e se um dos vizinhos for voyeur, deve haver fotos minhas desnudo circulando pela internet.

De volta ao meu edifício. Ano passado mudaram os moradores do apartamento acima do meu. Há pouco mais de um mês essa vizinha fez um aniversário evangélico, com cantorias desafinadas e toda uma comemoração murcha na hora dos parabéns. Até aí, ok, cada um tem sua fé, e aniversário deve-se mesmo comemorar, mesmo que de uma forma deprimente como essa - o vizinho anterior possuía filho ainda criança e fez festas de aniversário todo mês durante a pandemia. Impliquei, mas não reclamei.

Duro que depois dessa “festa” parece que acharam que o apartamento é apropriado para a realização de cultos e sessões de exorcismo. Uma vez por semana passou a ter cantorias incrivelmente desafinadas (ainda bem que Deus é surdo, ou já tinha mandado um meteorito no meu prédio), seguidas de uma verborragia gritada por longos minutos, talvez uma hora, numa chorosa língua inventada - que deve ser a tal língua dos anjos, os quais, deduzo, devem ser seres muito rudimentares para não conseguirem articular sequer sílabas simples. Claramente todo esse festival sonoro se dedicava não a louvar Deus, mas a atazanar o todo poderoso do mal, o Diabo, que diferentemente do todo poderoso do bem, está sempre acordado e à espreita, disposto a dar a mão a quem lhe pedir, e não só aos VIPs.

Como bom vizinho, tentei não implicar, apesar da irritação - afinal, também não sei se o vizinho de baixo não usa de muita tolerância para suportar meus barulhos, em especial de Calvin, meu gato-jamanta pulador.


Pois ontem, lá estava a vizinha no seu culto-exorcista semanal, com a devida cantoria desafinada, com o chororô dos anjos, tudo em volume muito alto, quando decidiram também pular, como se fossem crianças hiperativas num jardim da infância. Ou melhor, elefantes felizes num jardim zoológico. Foi demais. Reclamei para a síndica, que se prontificou a resolver o quiproquó no ato. 

Fiquei na porta a escutar (o prédio é antigo, as escadas não possuem portas). Escutei a campainha sendo tocada - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei o bater na porta - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei, então, murros na porta e o milagre se fez: repentinamente o silêncio. Evidentemente que o Diabo fugiu tão logo viu a síndica e tudo aquilo que meus vizinhos estavam fazendo se tornava desnecessário. Fui dormir tranquilo e com a sensação de missão cumprida. Como não sou egoísta, deixo aqui a dica às igrejas evangélicas e todos aqueles preocupados com o Diabo: para uma descapetização total e instantânea, sem dores, sem gritos, sem lamúrias, chamem o síndico!


24 de outubro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.