segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Engraçadinho e normativo

Escaldado por dez anos de IFCH-Unicamp (o instituto das ciências humanas da Universidade de Campinas), toda vez que vejo no meu Fakebook algum videozinho pretensamente engraçado e crítico, mas que na verdade é normativo, tratando de taxar nos outros tudo o que eles fazem de errado (é sempre o outro o errado), abre em mim um enorme lago de ressentimento - daí que hoje resolvi escrever uma crônica, pra dar um pouco de vazão a esse sentimento.
O IFCH parece um lugar legal, tolerante, onde aqueles que são marginalizados pela "norma padrão" da sociedade encontram acolhida. Em parte isso é verdade. O difícil é perceber o valor da fatura para esse acolhimento, com a recusa de tudo o que fuja esse outro padrão normativo. A exigência de uma determinada forma de pensar e agir aparece em argumentos mais racionais que os dos fiscais do cu alheio, porém não deixam de ser moralistas. A cobrança, contudo, dificilmente é feita diretamente: é no dedo que aponta para o outro que fica dito o que não se deve fazer - numa covardia que me parece ser o ethos da academia tupiniquim. Quando eu publicava algum texto contra a corrente no Cacheiros viajantes, o jornal dos alunos do IFCH, era comum meus amigos mais próximos ou minha então namorada (outra exímia "normativista") virem falar do que haviam comentado com eles sobre meu texto - para mim, nunca falaram nada. Em tempo: também eu fui super normativo durante ao menos metade de meus anos de IFCH, mas o fazia às claras, cara a cara, na expectativa de resposta do outro às minha contestações; tenho tentado mudar desde 2007, quando me relacionei com uma estudante de pedagogia que me jogou na cara que minha racionalização em ideais abstratos não era menos normativa que quem falava na moral e nos bons costumes.
Tempos atrás amigas compartilharam um vídeo em que mostrava como os homens fazem errado sexo oral nas mulheres. Muitas ainda acrescentaram: "homens, aprendam". Pelo vídeo, eu teria aprendido que mulheres são seres genéricos: um pedaço de carne com pontos específicos de estimulação que gerarão, ao fim de um tempo determinado, um resultado satisfatório - um output positivo, diriam os economistas. Que uma mulher prefira mais rápido e outra mais lento, que uma não goste de sexo oral, que outra goste de tudo quanto é forma, isso não existe. Que a mulher possa ser sujeito de seu corpo e seu desejo e dizer ao parceiro "não faz assim, faz assado", tampouco há essa possibilidade. Que mulheres façam sexo oral ruim em outras, isso é ontologicamente impossível. Homens, aprendam: mulher é tudo igual, acertou com uma, acertou com todas. O vídeo me lembrou as Playboys que eu lia no início da minha adolescência e vida sexual, nas quais haviam fórmulas para chegar, beijar e transar do "jeito certo" - claro que nunca consegui fazer do "jeito certo" indicado na revista e isso por muito tempo fez com que eu achasse que era um fracasso completo, até eu descobrir que cada mulher, por ser única, tem seu jeito.
Há cerca de três anos, bombou no mesmo Fakebook a postagem de um francês funcionário do Google com observações espirituosas sobre hábitos brasileiros, coisas que nos passam despercebidas tão naturalizadas estão (meus favoritos são: os casais se sentam nas mesas lado a lado, como se estivessem no carro; e as pessoas podem perder horas no trânsito, mas não se pode atrasar dois segundos depois que o sinal abre). Logo a seguir, lembro de ter lido ao menos outras duas postagens com observações de estrangeiros sobre o Brasil. De duas uma: ou se tratavam de europeus etnocêntricos que vieram para estes Tristes Trópicos arrotar regras de civilidade, ou, mais provável, alguns brasileiros ignaros-mas-diplomados que por terem tirado uma foto com a Monalisa no Louvre ou com o Pateta na Disney resolveram aproveitar a febre e tentar dar lições de etiqueta a esses bugres que aqui habitam, desqualificando todo e qualquer hábito que pareça autóctone - provavelmente em 2016 esses brasileiros que se julgavam estrangeiros devem ter sido algumas das milhares de pessoas brancas e bem remediadas que foram para a rua pedir seu país de volta (para entregá-lo ao Tio Sam), e que cantam com orgulho, logo após o hino nacional, o refrão do Ultraje a Rigor: "a terra é uma beleza, o que estraga é essa gente".
Desta feita, o vídeo engraçadinho-normativo que me precipitou a esta crônica é sobre asiáticos e coisas que ouviriam sempre. É uma versão dentro desse ethos normativo da classe média brasileira (não sei se classe alta ou baixa agem assim também, por isso restrinjo à classe a que pertenço) a um vídeo estadunidense ou inglês. No vídeo gringo, um homem chega a uma oriental e na expectativa de ser simpático faz uma série de gestos estereotipados tirados de Hollywood, da forma de cumprimentar e andar a posturas de artes marciais. A oriental responde com estereotipia dos gestos dos W.A.S.P., tidos por "naturais". A crítica é clara: um branco que recusa enxergar o outro que tem diante de si, preferindo mediações estereotipadas, ainda que a intenção não seja a de diminuir, há um claro desrespeito ao diferente, simplificado, caricaturizado e apresentado de chofre, sem qualquer real intenção de diálogo - no máximo, uma cantada.
O vídeo brasileiro se pauta em perguntas e colocações que orientais costumam ouvir sobre hábitos alimentares, se seguem as tradições, se mantém a língua, etc. Inverteram e puseram asiáticos fazendo as mesmas para descendentes de alemães, italianos e portugueses. Tirando a qualificação de "fajuto" ou "paraguaio" para quem não segue certas tradições, as falas denotam antes de qualquer deprecio pelo diferente, um interesse pelo outro, reconhecido na sua diferença e valorizado por isso, e um questionar a si próprio das simplificações que ouve. Eu mesmo já fiz várias vezes esse tipo de pergunta, não somente a asiáticos, como a amigos que vêm de regiões de forte enraizamento de uma certa etnia - como a região de colonização alemã em Santa Catarina -, e descobri vários costumes interessantes que desconhecia - por exemplo, uma das coisas que me intrigou foi o bloco de arroz moído, que é base da alimentação de muitos taiwaneses, em substituição ao pão, que lembra muito o fufu camaronês.
Apesar de não haver desrespeito naquilo que falam aos asiáticos, há uma normatividade no texto: não questione os orientais. O que incomoda tanto o autor do vídeo? O fato de ser questionado em seus hábitos significa que não se é o padrão, não é hegemônico - daí a curiosidade. Talvez seja isso que incomode: saber que a alteridade é possível, e ele também deveria adotar esse comportamento. Ele prefere, então, seguir o padrão brasileiro e ditar uma norma ao outro, um cala a boca. Não por acaso, o vídeo se intitula "se asiáticos brasileiros fizessem as perguntas que brancos fazem". Só brancos fazem as tais perguntas aos asiáticos no Brasil? Negros nunca perguntam se comem de hashi (kuaizi, chotkarak) em casa? Por que? Seriam os negros "do bem", ou é porque têm eles apenas o direito de falar "sim, senhor" na nossa sociedade cordial? Ou o incômodo é não ser reconhecido como um absolutamente igual por aqueles que ocupam o lugar mais alto na "escala racial de valor" da sociedade brasileira?
Esse incômodo em ser reconhecido (e valorizado) pela sua diferença me fez lembrar da impressão que mais me marcou a primeira vez que fui à igreja Nossa Senhora da Paz, na região do Glicério, centro de São Paulo, onde se concentram imigrantes vindos de regiões tidas por pouco nobres do globo, quando não "selvagens" - Caribe, América do Sul, África. Sem dinheiro, sem reconhecimento, sem valorização social, a sociedade não se mostra minimamente curiosa em saber das suas tradições e hábitos, quando não os desvaloriza por isso. São pobres, a escória, invasores, bandidos, "lixo humano", como qualificam muitos cidadãos de bem - esses que costumam desprezar e odiar também os brasileiros de tez escura. Cientes - pelo dito e pelo não-dito - da sua condição de párias, de que não são bem-vindos, tentam logo se adequar - ao menos visualmente - aos hábitos locais: uma efervescência de culturas diferentes, riquezas muitas de ver e encarar o mundo, e a tentativa ao máximo de ocultar qualquer dessemelhança. Na impossibilidade de apagar os traços do rosto, esbranquiçar a cor da pele, mimetizam o vestir dos locais: apesar de não-remediados, a grande maioria dos imigrantes usavam tênis Nike ou Adidas, calças Calvin Klein ou Lee, camisetas Hollister ou Abercrombie, na esperança das marcas darem a eles um mínimo de reconhecimento e dignidade - que lhes são recusadas pela sua origem e sua cultura - por parte dos detentores do capital simbólico do país, os brancos que compram suas roupas em Miami - ou por aqueles, mais morenos, que os imitam com falsificações da 25 de março. 
Mas há quem reclame de não sentir toda essa pressão para se adequar ao "comum" e ter seus hábitos valorizados.

06 de fevereiro de 2017




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