"Uma das coisas interessantes do filme é que ele mostra uma França não francesa". Fiz esse comentário à amiga que me acompanhava no cinema, ao terminar de ver o filme O segredo do grão (Le graine et le mulet), do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche. Já em casa, pensando um pouco sobre o filme, noto que não tive, ao menos em um primeiro momento, condições de compreendê-lo com mais profundidade. Fruto desse preconceito de "França não-francesa" que o diretor evidencia de maneira muito sutil.
Marcado por tomadas fehcadas e por um dinamismo nos diálogos, o filme me pareceu muito feliz na sua apresentação dos aspectos sonoros do dia-a-dia retratado, seja no almoço em família do domingo, na briga da mãe com a filha que não aprende a usar o penico, seja no silêncio gaguejante do protanista frente à burocracia municipal.
O filme se passa em meio à comunidade árabe de Marselha e conta a história de um velho, demitido do estaleiro onde trabalhava há 35 anos, apenas 16 dos quais com registro. "Você está velho, já não dá lucro, e eles não querem mais franceses; querem quem está de passagem", comenta um amigo quando ele lhe conta que deve perder o emprego em breve. Aos 61 anos e sem perspectivas, resolve, com o dinheiro da indenização, reformar um barco para transformá-lo em restaurante, no qual servirá como prato principal o cuzcuz feito pela ex-mulher.
Começa sua peregrinação pelos meandros do Estado. No banco, só darão um empréstimo se ele tiver licença da prefeitura, a qual só obterá se conseguir a aprovação da aduana para o projeto, a qual está condicionada a ter a garantia financeira para o empreendimento. O já conhecido "só te daremos dinheiro se você já tiver dinheiro". Com a ajuda dos filhos, amigos e da filha da sua atual companheira, consegue reformar o barco e a licença de um dia, no qual pretende convencer alguns figurões a financiar sua empreitada. Nesse evento, a câmera passeia por mesas onde estão franceses "legítimos", tratanto com desdém (ainda que receosos) o empreendimento de um "não-francês".
Estou no fim do filme e não preciso ir adiante - até para não desestimular ninguém de assiti-lo porque já sabe o final. Relembrando essa cena me dei conta do meu preconceito, até porque foi só nela que eu dei conta do preconceito dessa personagem. Não se tratava de um francês (uma francesa, no caso) falando de um não-francês, mas de uma gaulesa falando de um não-gaulês, o qual tinha a audácia de querer concorrer com ela. Assim como os não-gauleses franceses, no início do filme, temiam e falavam com certa raiva dos não-gauleses não-franceses, que aceitavam piores salários e menos direitos e tomavam, assim, seu empregos. O filme mostra essa disputa entre essas três "classes", assim digamos. A dificuldade dos franceses de segunda classe de acesso ao Estado - afora o seguro desemprego -, ao mesmo tempo que vêem seus empregos ameaçados pelos imigrantes que chegam.
Estou, claro, fazendo apenas um recorte de um dos aspectos que o filme levanta. Há vários outros dignos de serem notados e que não me ative aqui (como o fato de ter de apelar à ex-mulher para tentar recomeçar a vida). Friso uma vez mais o caráter muito vivo e quotidiano dos personagens, em especial suas conversas, que conseguem fazer com que um filme de 2h30 e quase sem qualquer suspense ou tensão passe rapidamente. Igual a um almoço em família no domingo.
Campinas, 14 de setembro de 2008
Marcado por tomadas fehcadas e por um dinamismo nos diálogos, o filme me pareceu muito feliz na sua apresentação dos aspectos sonoros do dia-a-dia retratado, seja no almoço em família do domingo, na briga da mãe com a filha que não aprende a usar o penico, seja no silêncio gaguejante do protanista frente à burocracia municipal.
O filme se passa em meio à comunidade árabe de Marselha e conta a história de um velho, demitido do estaleiro onde trabalhava há 35 anos, apenas 16 dos quais com registro. "Você está velho, já não dá lucro, e eles não querem mais franceses; querem quem está de passagem", comenta um amigo quando ele lhe conta que deve perder o emprego em breve. Aos 61 anos e sem perspectivas, resolve, com o dinheiro da indenização, reformar um barco para transformá-lo em restaurante, no qual servirá como prato principal o cuzcuz feito pela ex-mulher.
Começa sua peregrinação pelos meandros do Estado. No banco, só darão um empréstimo se ele tiver licença da prefeitura, a qual só obterá se conseguir a aprovação da aduana para o projeto, a qual está condicionada a ter a garantia financeira para o empreendimento. O já conhecido "só te daremos dinheiro se você já tiver dinheiro". Com a ajuda dos filhos, amigos e da filha da sua atual companheira, consegue reformar o barco e a licença de um dia, no qual pretende convencer alguns figurões a financiar sua empreitada. Nesse evento, a câmera passeia por mesas onde estão franceses "legítimos", tratanto com desdém (ainda que receosos) o empreendimento de um "não-francês".
Estou no fim do filme e não preciso ir adiante - até para não desestimular ninguém de assiti-lo porque já sabe o final. Relembrando essa cena me dei conta do meu preconceito, até porque foi só nela que eu dei conta do preconceito dessa personagem. Não se tratava de um francês (uma francesa, no caso) falando de um não-francês, mas de uma gaulesa falando de um não-gaulês, o qual tinha a audácia de querer concorrer com ela. Assim como os não-gauleses franceses, no início do filme, temiam e falavam com certa raiva dos não-gauleses não-franceses, que aceitavam piores salários e menos direitos e tomavam, assim, seu empregos. O filme mostra essa disputa entre essas três "classes", assim digamos. A dificuldade dos franceses de segunda classe de acesso ao Estado - afora o seguro desemprego -, ao mesmo tempo que vêem seus empregos ameaçados pelos imigrantes que chegam.
Estou, claro, fazendo apenas um recorte de um dos aspectos que o filme levanta. Há vários outros dignos de serem notados e que não me ative aqui (como o fato de ter de apelar à ex-mulher para tentar recomeçar a vida). Friso uma vez mais o caráter muito vivo e quotidiano dos personagens, em especial suas conversas, que conseguem fazer com que um filme de 2h30 e quase sem qualquer suspense ou tensão passe rapidamente. Igual a um almoço em família no domingo.
Campinas, 14 de setembro de 2008
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