Em
uma Curitiba onde moças de boa índole devem casar virgens, Maria se
encontra sempre com João no escritório deste. Uma vez cada quinze
dias, uma vez por semana, três vezes, de segunda a sexta?, não se
sabe. Como não se sabe ao certo em que época se passa a história
dos dois: a modernidade retrógrada de Curitiba - em nada diferente
do resto do país, inclusive de suas capitais mais cosmopolitas - não
permite precisar: poderia ser início do século XX, poderia ser
início do século XXI; fica em algum ponto dentro desse intervalo,
ainda não adentrado o século XXI, pela ausência de celular e
internet. Os encontros são às escondidas: Maria não quer ficar com
má-fama, João é casado. Se encontram porque Maria precisa de
dinheiro e João, carne nova para se satisfazer. O tema que pulsa em
toda a novela é o machismo. João é machista? Maria? Ou machista é
Curitiba, é todo o contexto? Ou seríamos nós, a classe-média, que
difundimos nossos valores aos que consideramos subalternos - as
Marias de todos os dias -, como se fossem absolutos? O roteiro, que
parece óbvio, traz muito nas suas entrelinhas: Dalton Trevisan
complexifica a relação entre os dois, sem precisar de maiores
dramas que não os banais de uma jovem vinda do interior para a
capital, cujo principal projeto de vida é se casar, e seus
relacionamentos são repetidas histórias de brigas e ciúmes que
aparentemente nada variam. Pelo dinheiro que recebe de João, Maria
não lhe dá um beijo - diz que não gosta, por mais que João
insista -, não geme, não finge estar gostando, não se mexe. Ele se
diverte assim mesmo em seu corpo, até o ponto onde permite garantir
a decência da moça - ao menos a verificável. "Veja como é
quentinho", ele sempre oferece, e esse parece ser o passo mais
ousado que dão. Apesar de não se sentir satisfeito com os limites
impostos por Maria, continua a encontrá-la, segue dando dinheiro. O
livro é feito dos diálogos desses encontros, que consistem
basicamente de Maria contar suas agruras amorosas - o sargento do
exército que não deixa que trabalhe, o dentista, o magrelo que não
a agrada, mas é capacho -, e alguns comentários e conselhos de
João, além de seus pedidos - sempre negados - de um beijinho. A
certa altura Maria diz que mesmo que case, continuará com os
encontros; outra hora, que não vai lá por dinheiro - apesar de
sempre pedir. Maria mente? Não parece. João, por seu turno, se
mostra muito mais do que um homem com dinheiro a se aproveitar do
corpo jovem de uma moça pobre. Não apenas por respeitar os limites
impostos por ela ou por instá-la a trabalhar e estudar, mas por
ouvi-la com atenção. Há uma confusa relação entre os dois - se
nos fiarmos nos estereótipos que a situação nos remete. Pouco,
quase nada sabemos de João; em compensação, quase tudo sobre
Maria. Há momentos em que parece que quem realmente é usado é João
- o que tampouco é verdade. Há um afeto entre os dois, um afeto
estranho, pois foge das convenções moralistas - de esquerda e de
direita - em que tentamos encaixar o mundo. Dalton Trevisan, em Nem
te conto, João, sutilmente nos
mostra a dificuldade que temos para enxergar o nosso entorno, ele
delicadamente nos desestabiliza, nos joga na cara os preconceitos dos
séculos passados que insistimos em trazer para os dias atuais - e que ajudam a tornar mundo tal qual ele está.
24
de janeiro de 2016
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