E será que não
vivemos num território sagrado, de deuses que nos exigem sacrifícios
por sua permissão para ocuparmos uma terra que não nos pertence? O
fogo que aparentemente consome Amazônia, Pantanal, Cerrado, o ar
puro, a biodiversidade - o corpo indígena ou indigente -, talvez
seja deus nos protegendo - nós, leigos, que não o notamos. "Entre
os hindus não havia templo. Cada um podia escolher o lugar que
quisesse para sacrificar, mas esse lugar devia estar consagrado
mediante alguns ritos, dos quais o mais essencial era aquele que
consistia em dispor os fogos. O fogo é matador de demônios, mas
dizer isso ainda é pouco: ele é deus; é Agni em sua forma
completa". A pergunta que talvez devêssemos nos pôr: quem são
os demônios que esse fogo tenta expurgar? "Do mesmo modo, segundo certas lendas bíblicas o
fogo do sacrifício não é outra coisa senão a própria divindade
que devora a vítima ou, para dizer mais exatamente, o sinal da
consagração que a inflama". Será a nossa consagração, nessa
terra que alguém tornou santa antes que percebêssemos? E inebriados
pelos deuses - nos sentindo o próprio deus na Terra -, nos perdemos
em rituais que nem nós percebemos - talvez o tilintar de cobres
santificados nos cegue para a crua realidade? "No México e em Rodes embriagava-se a vítima.
Essa embriaguez era um sinal de possessão, o espírito divino
invadindo já a vítima". Nos embrigamos para esquecer os demônios que nos habitam e atormentam, mesmo quando deveríamos estar alegres. Há ainda espaço para possessões? Somos os sacerdotes, a vítima ou o
demônio? Seríamos os três e ainda o leigo que assiste a tudo sem
entender? "A morte deixava atrás de si uma matéria sagrada, a
qual servia para desdobrar os efeitos úteis do sacrifício".
Não, não morremos ainda - nós, brancos, classe média, que vemos
com ignorância, angústia e medo o horror de tudo isso -, nós não
somos as vítimas. Nossa participação nesse sacrifício se dá de
outra forma - ao menos por enquanto. "Em Atenas, o sacerdote do
sacrifício das Bouphonia fugia jogando fora seu machado, todos os que
haviam participado do sacrifício eram citados no Pritaneu e lançavam
a culpa uns sobre os outros; por fim condenava-se o cutelo, que era
lançado ao mar". Mas em Terras Brasilis, ocupada por europeus
errantes ignorantes de sua origem, seu destino e seus pecados irremissíveis, diante da
sacralidade bovina, optamos por carne preta,
mais abundante e mais barata no mercado - alguns dizem ser humana, como se fosse da mesma matéria da de uma pessoa branca. Porém nessa performance
tropical não há troca de acusações, não há exílio para os
sacerdotes do sacrifício, pelo contrário: o louvor ao cutelo que
transforma imediatamente em bandido todo preto que atinge, num ritual que Marcel Mauss e Henri Hubert não imaginavam. Mas algo estamos
fazendo errado nesse sacrifício, que semana passada foi de 28, só em Jacarezinho:
"essas precauções, propiciações e honorificações têm uma
dupla finalidade. Primeiro, indicam o caráter sagrado da vítima; ao
qualificá-la como coisa excelente, como propriedade dos deuses,
faz-se que ela o seja". Não somos sequer bárbaros: em que momento teríamos perdido nossa humanidade? Somos incapazes do mais elementar um ritual de sacrifício, apenas o sangue pelo sangue. "Mas trata-se sobretudo de induzi-la a se
deixar sacrificar pacificamente para o bem dos homens, a não se
vingar depois de ter morrido". Nossos sacerdotes e seus cutelos
de pólvora parecem ter se confundido com o próprio deus - um gênio
maligno a lhes insuflar o erro, falsos profetas a espalhar a mentira
como se fosse boa nova. "É que com a morte do animal
liberava-se uma força ambígua, ou melhor, cega, perigosa pela
simples razão de ser uma força. Era preciso pois limitá-la,
dirigi-la e domá-la. Para isso é que serviam os ritos".
Esquecemos os ritos que controlam as forças cegas que nos dominam
enquanto cremos estar a dominá-las, dessacralizamos a morte e não
reconhecemos a honorificações de quem foi sacrificado em vão.
Sacerdotes do vazio (quais os efeitos úteis do nosso próprio sacrifício?), nosso devaneio de imortalidade de tempo em
tempo, repentinamente, se desfaz e nos vemos banhados de sangue
inocente, com nosso futuro consumido pelo fogo que nada purifica - ou
será que somos nós os demônios? Nosso devir é explicitado em
quatrocentas mil bocas que, como peixes tirados para fora da água,
se afogaram em pleno ar.
09 de maio de 2021
* Trechos do livro Sobre o Sacrifício, de Marcel Mauss e Henri Hubert.
** Trilha sonora incidental: Arvo Pärt, Spiegel im Spiegel: 3. (https://open.spotify.com/track/7v5raGYZhiVO90qGWj5Leo?si=d320c88f9fa4457b)
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