segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A mídia já prepara o novo round da luta contra o SUS e os serviços públicos

Desde o início dos anos 1990 há uma pesada campanha de desqualificação de tudo o que é público - dos funcionários aos serviços - e de louvor a tudo o que é privado e segue a (pretensa e extremamente ilusória) eficiência do mercado - mineração, telefonia, cadeia de gás e petróleo, educação, saúde (parênteses: trinta anos de bombardeio ideológico cerrado e não conseguimos estabelecer uma contra-narrativa eficiente; sim, há o oligopólio da mídia, que cala toda voz dissonante aos seus interesses (e isso explica porquê um certo deputado tinha espaço, dez anos atrás, para falar atrocidades e babar antipetismo), mas há também falha na estratégia de comunicação das esquerdas. fecha parênteses). 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de complicações a esse discurso ideológico - repetido mesmo por quem vivencia seu negar na realidade. Primeiro, salientou a importância do SUS, a qualidade de seus serviços, apesar do subfinanciamento histórico e agravado desde o golpe de 2016 (ponto nunca tratado pela mídia corporativa). O Sistema Único de Saúde está longe da excelência de um hospital de elite, mas 98% da população está igualmente longe de um hospital desse nível. Junto com o SUS, reabilitou-se em alguma medida o funcionarismo público. Isso é preparar o discurso não só contra o ultraliberalismo defendido pelos donos do dinheiro e das empresas de mídia nas discussões eleitorais de 2022, como mesmo para o PT, que teve como uma de suas marcas certa recomposição dos serviços públicos (bem problemática, mas não é meu foco aqui).

Com a CPI do Covid e as denúncias contra a Prevent Senior, uma dose a mais de reforço no discurso da saúde pública e contra a rede privada. Neste caso, sigo a linha do Luis Nassif e não entro nessa comunhão nacional que pede a fogueira para a empresa: por mais que haja indícios de desvios graves de conduta por parte do plano de saúde, ainda não há provas robustas de que houve decisão deliberada de matar pacientes (por isso a necessidade de maiores investigações antes de um veredicto e da queima da bruxa em praça pública). Ao que tudo indica, uma das principais acusações que se tem contra a empresa é de ordem moral: atuar como uma empresa privada que visa o lucro (quem esperaria isso de uma empresa capitalista, não é? O fato de ela lucrar em cima da saúde de pessoas, e não com salsichas ou comunicações, é mero detalhe insignificante ao Mercado), e ter agido de maneira idêntica ao que fizeram suas concorrentes, inclusive na prescrição de cloroquina como tratamento, no início da pandemia - agora, por que a imprensa corporativa não fala dos outros planos de saúde, Nassif traz bons argumentos, e nenhum deles é fruto de preocupação com a saúde (ao menos não a dos pacientes) [https://bit.ly/3lScomZ].

No UOL, do grupo Folha, Thiago Herdy parece tentar fazer uma moral com os patrões ao soltar a matéria "Idosos morreram mais de covid na rede pública do que na rede privada de SP" [https://bit.ly/3pfbNh2]. O colunista ainda tem o mínimo de decência jornalística (cada vez mais rara na mídia corporativa) de pôr o lado dos críticos da sua análise simplista: está no fim do longo artigo, para os poucos que chegarem até lá - e sem que merecesse rever o temerário título da reportagem. 

E porque insisto em chamar de simplista a avaliação do repórter, por mais que os dados apontem, de fato, que na rede pública de SP houve mais óbitos que na rede particular? Pelo simples motivo que, por tudo o que se sabe do novo coronavírus até agora, há uma série de agravantes na infecção devido às condições prévias de saúde das pessoas, ao passo que o título da notícia atribui a diferença de letalidade estritamente à pretensa diferença no tratamento dos pacientes infectados - ou, em outras palavras, à ineficiência do serviço público, do SUS.

Se os dados indicam que há mais mortes na rede pública, que atende preferencialmente pessoas mais pobres e moradoras das periferias da cidade, será que as condições socioeconômicas dessas pessoas não afeta no sucesso ou insucesso do tratamento? Para Herdy, não. Covid é covid, e uma pessoa chegar aos sessenta anos sem saber que era diabética (e portanto, sem cuidar) em nada influencia suas chances de sucumbir ao novo coronavírus (exemplo esse de uma pessoa que conheço, catadora de recicláveis, que felizmente sobreviveu, depois de 27 dias de internação). Um idoso branco de classe média, com plano de saúde, com amplo acesso a informação e cuidados preventivos, dinheiro para uma dieta rica e academia, teria a mesma chance de uma pessoa pobre, que mora na periferia, que muito provavelmente em algum momento da vida já passou por insegurança alimentar e que não possui uma cultura de cuidados preventivos, com exames periódicos e visitas ao médico sem ser em casos graves, quando se apelava ao pronto socorro - provavelmente habituadas que estavam a ter que chegar às três da manhã para conseguir marcar uma consulta para dali seis meses no posto de saúde do bairro.

Há quem prefira ver a manchete de Herdy para o UOL/Folha apenas como deslize, falta de cuidado, desatenção. Com o histórico da mídia corporativa e a continuação de seu padrão de desinformação - principalmente quando está em jogo mercados altamente lucrativos -, eu não consigo ver na matéria que não o preparo para uma nova bateria de ataques contra o SUS e os serviços públicos, tentar destruir a imagem legitimamente construída durante a pandemia de que é no Estado, que serve o público, e nas empresas privadas, que visam o lucro, onde está realmente a preocupação com a saúde.

18 de outubro de 2021

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