quinta-feira, 9 de março de 2006

Manual prático do ódio (inacabado)

Terminei de ler o livro Manual prático do ódio do Ferréz. Morador da periferia de São Paulo, Ferréz geralmente é tido como um autor que retrata o quotidiano violento do local em que vive. Não se pode dizer que isso está errado, mas reduzi-lo a um mero retratista de periferia é empobrecer sua obra. Assim fosse e seus livros seriam um mero renascimento do movimento naturalista do final do século XIX, início do XX, em que com um olhar “objetivo” retratava-se homens como animais.
Em meio ao cenário de violência Ferréz capta o humano das pessoas que há muito perderam o direito de sê-lo. Os sonhos, tanto os que não deixaram de ser apenas sonhos quanto os que ainda podem a vir a ser realidade, se a realidade deixar. A solidão, a busca de um sentido para a vida, se um dia a sociedade lhe permitir viver. Pois o livro trata de humanos, mas que trazem junto a marca de marginalizados. O que muitos ali querem não é nada além de uma vida pequena burguesa, como as que assistem na televisão: uma casa e uma família. Ou então seus sonhos são sonhos de consumo: um tênis caro, uma moto cara para impressionar as garotas, curtir a vida sem preocupação, assim como os jovens das classes abastadas curtem-na. Mas se esquecem do grande abismo que há entre a favela e o Morumbi: dinheiro. E se a propaganda diz que a vida só pode ser curtida se se tiver carro, moto, tênis, roupa, por que seria diferente para quem não tem dinheiro?
O trabalho honesto é a vontade da maioria, mas distante: a vergonha do ex-operário da Metal Leve que agora sobrevive de bicos, o salário que obriga família a recolher os restos da feira, o drama do pai morrer e a família não ter dinheiro para o enterro – ela que geralmente não o tem sequer para a comida; os “bandidos” não vendo a hora de trocar de vida e comprar um sítio, e voltar para a Bahia, dar uma vida boa para os filhos: com brinquedos iguais ao vistos na tv.
O livro trata também da degradação moral da periferia. Essa degradação vem junto com a degradação do próprio local. Sem qualquer perspectiva alguns jovens preferem ter fama – qualquer fama – a qualquer preço. Matam indiscriminadamente, somente para se sentirem temidos e falados, mesmo dentro da comunidade. A degradação vem também da vida sempre miserável, ou cada vez mais miserável. E a degradação vem também do Estado: não é o crime que corrompe a polícia, é a polícia que corrompe o crime: é o delegado corrupto quem dá o suporte ao bandido que não respeita a lei da periferia.
Mas ser da periferia não é estar fadado a virar bandido – como brinca a patroa ao gracejar com o filho da empregada. Ser da periferia é correr o sério risco de ser morto a tiro, por estar no lugar errado, que são muitos. O livro começa com dois salmos: o salmo 18, versículo 37, e o salmo 58, versículo 10; mas poderia muito bem começar com o pai-nosso: e não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. As perspectivas dos moradores da periferia são sempre péssimas – seja na honestidade, seja na malandragem –, mas o caminho que cada um segue deve-se também da história de cada um da sua escolha: se foi capaz de resistir à tentação, se foi capaz de escapar do mal.

Campinas, 09 de março de 2006

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Relato de viagem final

Pois é, a viagem ainda nem chegou ao fim e eu já fazendo balanço. Mania de quem não sai da sala do cinema antes de dizer se achou do filme bom ou ruim - mesmo que seja para mudar de opinião depois. Mas foi uma viagem que me fez fugir do meu agir habitual: viajamos meio de improviso, sem muitos planos - além de ver pingüim e chegar ao fim do mundo -, sem nada muito programado - o que me estressou e desgastou bastante (que saudades de viajar com o seu Bernardo!).
Foram novas paisagens, novas sensações, novas (e velhas) descobertas e muito caminho para refletir (ao todo teremos feito mais de dez mil quilômetros em pouco mais de vinte dias). Caminho repetitivo e monótono, mas mesmo assim interessante; algumas vezes muito bonito, como a volta para Madryn, em que uma lua cheia gigante, encoberta por nuvens, criava sombras no horizonte, e o ônibus cruzando aquelas retas infindáveis pelo meio da estrada (mania nacional), com luz baixa, iluminando somente o necessário.
O passeio ao Fitz Roy selou o fim da viagem: as pernas ainda sentem.
Na volta, uma noite em Madryn, outra em Buenos Aires. No caminho Madryn-Buenos Aires o mesmo rodomoço de quando fizemos o caminho inverso: Duílio (Duílio, Duílio) e sua execrável coleção de filmes, com direito a bingo com vinho de Mendoza como prêmio (não ganhamos).
Pensávamos em ficar até domingo para ver um jogo na Bombonera, mas a vontade de voltar para casa falou mais alto, e só ficamos a noite necessária na capital. Inclusive, faço duas correções sobre o que havia dito anteriormente: disse que onde há um possível espaço em branco há publicidade, mas Buenos Aires não está - a exemplo de São Paulo - coberta de outdoors, e ainda é possível ver os prédios, as paisagens, o céu; também disse que Buenos Aires não tem flautas peruanas, na sua versão clássica (flauta e tecladinho), mas tem.
Nossos dois últimos dias de viagem passamos caminhando e falando besteira. Dentre as proferidas, a grande idéia para voltar para Brasil (quiçá viajar pelo mundo) de avião, sem pagar: pagar trote na embaixada. Outra foi a piada: por que uma velhinha atravessa a rua em Buenos Aires? Para cometer suicídio.
Enfim, a viagem foi legal, as besteiras sem graça engraçadas, e agora estamos voltando para casa!
Saudações,
2.
Buenos Aires, 16 de fevereiro de 2006.

PS: segunda coisa que compramos ao chegar ao Brasil (a primeira foi a passagem para Pato): água mineral!
PS2: talvez a maior bizarrice da viagem: no ônibus Foz-Pato havia três mochileiros: eu, o Phah e um japonês! O cara queria ir pro Rio Grande do Sul, mas não queria fazer viagens muito longas, achou que 8h até Curitiba era muito e preferiu passar uma noite em Francisco Beltrão... Desconfio que não irá mais sair da rota consagradal depois dessa parada