segunda-feira, 15 de maio de 2006

A surpresa?

Nem os personagens de Lewis Caroll foram pegos de surpresa com a ofensiva do dito crime organizado em São Paulo. A surpresa acontece quando se pensa no vulto das ações, mas não na sua natureza: já faz tempo que o crime ataca e intimida a polícia; não é a primeira rebelião organizada do estado, e o sistema prisional brasileiro e paulista há muito são um inquestionável retumbante fracasso (desde quando eu não escuto que as prisões são a universidade do crime?).
Duas características me chamam a atenção dessas ações: o grau de organização, coordenação e inteligência do crime organizado e a declaração de guerra ao Estado brasileiro subjacente aos ataques.
O primeiro ponto é evidente: segundo a polícia a rebelião estava planejada para o domingo, foi descoberta antes, mas isso apenas abreviou a ação, não chegou perto de evitá-la ou mesmo minimizá-la. Além de rebeliões e ataques a delegacias, ataques a policiais a paisana.
O segundo é que os mortos não são “civis”, os ataques não foram feitos a esmo, não visavam a população civil. Ao contrário do incêndio a ônibus no Rio de Janeiro acontecido há um certo tempo, desta vez as pessoas são “obrigadas” a deixar os veículos antes de estes serem incendiados (no dizer dos âncoras de telejornais, como se alguém prefisse ficar e morrer carborizado).
Ao mesmo tempo que declara guerra à polícia e ao Estado brasileiro, o crime pressiona os podero$o$ do país a forçarem uma saída o quanto antes, ao atacar ônibus – que carregam aqueles que fazem as máquinas operarem – e bancos. E o Estado reage da mesma forma, seja por meio de porta-vozes oficiais, seja por meio da imprensa: como em uma guerra, a lei que vale para os cidadãos não vale para os criminosos: “bandido que enfrentar a polícia morre”, desobrigando o Estado de seu dever de preservar a vida dos seus cidadãos (mas quem são os cidadãos dos Estado brasileiro?).
Novamente friso: não houve baixas “civis” nos ataques do crime.
A classe-média, entretanto, está apavorada, estimulada por apresentadores de telejornais que se situam entre o ultra-sensasionalimo e o hiper-sensasionalismo. Quem tem motivos para pânico e pavor é a população das periferias. Enquanto os “bandidos” (odeio este termo) parecem estar dispostos a poupar baixas civis, algo fácil de conseguir, uma vez que policial é uma profissão regulamentada, não há qualquer garantia de que a “reação” (nas palavras do comandante-geral da polícia militar paulista, em uma declaração que deixa clara quem é que está dando as cartas na batalha) da polícia conseguirá distingüir os “bandidos”, dos “cidadãos de bem” (também abomino este termo), ou mesmo aquelas pessoas ligadas ao crime organizado daquelas que são ladrões de galinha. Rota e Choque na rua: quem é que pode estar seguro assim?
E, é claro, já começam as mil idéias maravilhosas para acabar com a violência, para que o Brasil “viva em paz” (como se violência se resumisse ao apertar do gatilho). É claro que é necessário aumentar os gastos em policiamento e criar um novo sistema prisional (porque no caso atual não cabe mais reformá-lo). Mas e a morosidade da justiça? E o uso de penas alternativas? E as propostas de endurecimento de penas no estilo italiano, bem diferentes das sempre lembradas, aclamadas e completamente inúteis pena de morte e prisão perpétua (inclusive bandeira de campanha do senador-xerife do Estado acuado)?
Mas o pior é que não se levanta qualquer questionamento às causas do crime organizado existir, ou, pelo menos, conseguir recrutar considerável efetivo com grande facilidade. Conseqüentemente, nenhuma proposta que pense em acabar com o crime, apenas combatê-lo. Será que três décadas perdidas não explicam algo? Salário mínimo: R$ 350,00, tênis Nike Shox: R$ 600,00 não tem influência? Aumentar dinheiro para a segurança, mas tirar de onde, do superávit primário ou da educação? Desemprego, precarização do emprego e salário baixo não explicam nada? Hoje se um funcionário entrar em uma tercerizada para trabalhar, ganhará um salário mínimo e não terá perspectiva de fazer carreira na empresa, pelo contrário, quanto mais tempo, maiores as chances de ser demitido. Já no crime organizado, um soldadeco do tráfico pode vir a ser chefe, por que não?
Está assustado com essa onda de violência? Relaxe, a guerra vai começar mesmo quando o Estado partir para o revide. A não ser, é claro, que se decida discutir o crime e a violência além dos conceitos de “bandidos” e “cidadãos de bem”. E 2006 tem eleições, se é que isso vale alguma coisa...

ps: uma bela imagem vista no Jornal Nacional, um juiz dizendo que “tempos duros exigem leis duras” com uma foto do Stálin ao fundo.

Florianópolis, 15 de maio de 2006.

domingo, 23 de abril de 2006

Para salvar a democracia?

De vez em quando me baixa o vírus da teoria conspiratória. Parece que ele me pegou novamente por estes dias. Não que eu ache que haja qualquer golpe vindo por aí, mas que o terreno está sendo preparado, isso parece. As justificativas para uma intervenção para salvar a democracia no Brasil já começam a surgir aqui e acolá. Primeiro é preciso aceitar a tese de que eleição somente não é sinônimo de democracia (o que eu concordo), é preciso também que as eleições sejam livre e vencidas por aqueles que defendem os grande$ intere$$e$ nacionai$. Esse argumento já vem sendo utilizado (claro que ocultando-se a segunda premissa do silogismo) para desqualificar governos sul-americanos.
No Brasil, uma democracia consolidada, como tanto afirmaram quando na alternância do poder do PSDB para o PT, esse risco de o país deixar de ser a maior democracia do mundo não corre tanto risco, visto que a disputa se desenha entre o Tico e o Teco (ou seria melhor dizer entre os Irmão Metralha?). Mas a súbita ascensão do ex-governador do Rio, o nada limpo Anthony Garotinho, já mereceu editorial da Folha, dia 18 de abril. Sob o argumento de que o candidato não é versado em economia nem apresentou ainda suas propostas de maneira sistemática, o editorial critica o discurso de mudança nos rumos ortodoxos da economia.
Esse editorial não quer dizer muita coisa. Pode se tratar apenas de um grupo empresarial fazendo pressão para que permaneça um modelo macroeconômico que tende a favorecê-lo. O que me assustou foi que alguns dias antes eu havia trocado e-mail com um dos principais colunistas do jornal. Ele volta e meia se queixa de que o eleitor brasileiro tem memória curta, tem preguiça de acompanhar a ação do seu candidato, e se tivesse vontade encontraria uma lista de uma dúzia de congressistas merecedores de voto. Perguntei se o problema não iria além da desinformação do eleitor, se não havia um problema do sistema eleitoral e político, uma vez que a representação no legislativo representa, no máximo, alguns absurdos do Brasil, como o relatório da CPI da Terra. Além disso, levantei o problema de que mesmo que essa uma dúzia de candidatos recebesse a maioria absoluta dos votos, ainda assim entrariam muitos da tradicional laia que habita o congresso, dado que não há uma “nota de corte”, um número mínimo de votos para se eleger (vide Enéas e seu Prona em 2002). A resposta dele foi reafirmar que o problema estava na falta de informação do eleitor, ignorando a crítica do próprio ombudsman da Folha, que dizia do quão precária é a cobertura jornalística do congresso e do senado fora dos casos excepcionais. Ou seja, ao negar a crítica ao sistema e, ao mesmo tempo, deixar a culpa para o lado mais fraco (a culpa da falta de informação é antes dos eleitores que não se informam ou dos jornais que não dão a informação?), parece preparar uma justificativa para uma eventual intervenção em nome da democracia, não nos moldes de 64, mas nos moldes da Venezuela, em que a imprensa tupiniquim comemorou descaradamente a queda do “presidente fanfarrão” e a possibilidade de um empresário na presidência. Atenção! Não digo que o tal colunista seja golpista, vá defender um golpe, ou qualquer coisa do gênero; mas ocorre que a democracia liberal é um terreno demais arenoso: a tentativa de defendê-la pode servir perfeitamente para justificar um golpe contra ela.

Campinas, 23 de abril de 2006