As cem pessoas no palco
são representativas da cidade de São Paulo, segundo os dados do
Censo 2010 do IBGE, em termos de idade, sexo, local de residência,
estado civil e cor. São pessoas comuns, estudantes, aposentados,
desempregados, taxistas, pesquisadores, pastores, tatuadores, gays,
héteros, negros, pardos, amarelos, brancos, direitistas,
esquerdistas, cristãos, ateus, umbandistas, espíritas.
Estão no palco do
Theatro Municipal de São Paulo por conta do espetáculo 100% São
Paulo, do coletivo berlinense Rimini Protokoll - formado por
Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel -, e em cartaz por conta
da terceira Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP).
Antes do espetáculo, ao ler o programa, a idéia parece boa e a
expectativa é grande. Ao fim, resta a decepção e a impressão de
que a boa idéia foi mal desenvolvida. Após um tempo, concluo que a
peça é fiel ao que se propõe, e não poderia esperar nada além de
um medíocre reality show. O paralelo com reality show vem da
diretora do Goethe-Institut, responsável por trazer a companhia, ao
comentar na apresentação do programa que "o resultado é a
encenação de uma demografia metropolitana em forma de 'reality
show'" - se eu tivesse lido o programa antes, não teria perdido
meu tempo no Municipal. Ela é precisa: 100% São Paulo é uma
franquia a la Big Brother - a diferença é que o produto da
Endemol é para a televisão, e o do Rimini Protokoll para teatro -,
replicada em várias partes do mundo e, desconfio, em todas
registrando o senso comum mais rasteiro. Talvez se aqui em São Paulo
houvessem apresentado 100% Filadélfia ou 100% Atenas
ou 100% Taipei, dando ao público a possibilidade de contrapôr
suas concepções com outra cultura, poderia ter causado um impacto
maior do que um entretenimento de segunda linha. Segunda linha,
inclusive, esteticamente - um eficiente e convencional modelo
inspirado em programas de televisão.
O início é
interessante, as pessoas se apresentam rapidamente, e apresentam o
objeto que carregam e que as representa. A seguir, distribuem-se pelo
espaço conforme as cinco categorias - um telão ao fundo mostra
imagens de cima, que ajudam a visualizar a estatística da cidade.
Parece uma aula de geografia animada - e sem questões relevantes,
como nível de renda, de endividamento familiar, de ocupação, de
acesso a serviços essenciais de qualidade. Ainda assim, cresce a
expectativa que depois disso o espetáculo perca esse ar de tele-aula
e venha a dramaturgia. Não há vem: o início é o que há de
melhor. 100% São Paulo
lembra o quadro Tentação do
Programa Silvio Santos, em que as pessoas precisam escolher uma das
portas que acham conter a resposta correta. No caso de 100%
City, as pessoas se distribuem
entre o grupo dos "eu sim" e do "eu não", sem
que haja resposta certa e prêmio ao final. Longo tempo assim, e
muda-se a forma de resposta, primeiro para uma opção de quatro
opções pré-determinadas e representada por cores, a seguir para o
levantar a mão. Ainda que esse tipo de questionário não abra
possibilidade de maiores reflexões, poderia ao menos haver perguntas
boas. Não é o caso. O caso aqui é entreter e dar ao distinto
público do Municipal a impressão de que poderiam ser eles no palco.
Tanto é que muitas das pessoas da platéia também participam,
comentando com seus companheiros se sim ou não, ou levantando a mão.
Ao
contemplar as respostas dos selecionados, descubro que o ex-PM e
atual taxista é a favor da redução da maioridade penal, que o
pastor evangélico é contra o aborto, que o patinista gay da Mooca é
contra bolsa família e cotas nas universidades, contrariamente ao
negro morador do Capão Redondo. Em suma: descubro o que se sabe ao
andar por São Paulo, ou ao ler qualquer levantamento de instituto de
pesquisa.
Em
algumas das brevíssima apresentações que cada uma das pessoas faz
de si no início, há indicações de possibilidades que o trio
alemão passa ao largo. O ex-PM e taxista, por exemplo, mostra uma
foto da sua turma da polícia: segundo ele, dois viraram bandidos,
três foram assassinados. Talvez na sua história de vida fosse
possível compreender o que o leva à posição de favorável ao
porte de armas e redução da maioridade penal - compreender não
para ser favorável, mas para não reforçar a polarização que hoje
se vê em todo o mundo, do Brasil de coxinhas e petralhas aos Estados
Unidos de Trump versus Sanders, passando pela Europa que não sabe se
reafirma a civilização ou adere de vez à barbárie. Mas o que os
diretores oferecem é apenas uma resposta simplista que reforça
preconceito e estereótipo, e causa indignação do casal ao meu
lado.
Admito
nunca ter me interessado por reality show, e o pouco que vi achei
descartável, inclusive como entretenimento; e que tele-aula tampouco
me empolga (ok, andei assistindo a uns documentários na TV Escola
que gostei, e muito!). Mas não é por isso que 100% São
Paulo é fraco. Da possibilidade
de sortear trajetórias de vida para serem narradas ao público, de
contrapôr visões divergentes de duas ou três das cem pessoas em
assuntos polêmicos, de causar estranhamento e mesmo tensão nos
participantes ou no público, tudo isso é descartado em favor de um
medíocre reality show cara-a-cara, que força identidades precárias
- sou palmeirense, sou corinthiano, sou vaidosa, sou da paz, sou da
zona sul, da zona leste -, aguça egos e nos oferece uma amostragem
do que pretensamente opina o paulistano - não digo pensa porque as
respostas "sim" e "não", salvo quando muito bem
trabalhadas, não autorizam reflexões nem maiores pensamentos. Ao
fim, o que há de mais profundo em todo o espetáculo são os objetos
trazidos pelas pessoas.
09 de março de 2016.
O melhor momento da peça, quando cada um representa o que cada um costuma estar fazendo em determinada hora. |