quarta-feira, 15 de junho de 2016

Do outro lado do mar, as sobras da Europa [Diálogos com o cinema]

Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme, ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir apresentações e "papérs" para seminários e congressos marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do outro lado do mar é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte, mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações. Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois de parte da população perder o pouco que tinha, devido à bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa estão na própria Europa - são a própria Europa.
A honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro retratado por Abril Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo - dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.

15 de junho de 2016



quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mariana Pineda deveria Temer o futuro? [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Me assusto com a velocidade com que o tempo passa ultimamente - não digo do tempo das horas, mas o tempo da história. Um ano e meio atrás, em novembro de 2014, eu escrevia sobre a peça Cantata para um bastidor de utopias, da Cia do Tijolo, como sendo uma peça sobre nosso passado - cujas marcas em nossa sociedade ainda são presentes [http://bit.ly/cG14119]. Decido ouvir as músicas do espetáculo, que em 2015 teve o lançamento de livro e cedê, quando em cartaz no TUSP - faço isso às vezes, mas em geral me centro na segunda e na última faixa, "Dia triste em Granada" e "Ainda cabe sonhar", respectivamente. Desta feita deixo o disco avançar. As músicas da peça transcorrem na Espanha que poderia ser o Brasil pós-64 - nada de novo. No terceiro ato, na cena entre o investigador-juiz Pedrosa e a conspiradora pela república, Mariana Pineda, começo a notar que a peça, de 2013, hoje fala mais do presente que do passado:
"PEDROSA - Mariana! [pausa. Corta mais um fio] Uma bela mulher como a senhora não sente medo de viver só?
MARIANA - Medo? Nenhum, senhor Pedrosa!
PEDROSA - Há tantos liberais e tantos anarquistas em Granada, que o povo não vive seguro. A senhora sabe!
MARIANA - Senhor Pedrosa! Sou uma mulher de meu lar e nada mais!
PEDROSA - E eu sou o juiz. É por isso que me preocupo com estas questões. Desculpai, Mariana, porém já faz três meses que ando louco sem poder capturar um dos cabeças..."

Pedrosa, o juiz, à caça de um dos cabeças dos que conspiram contra o rei e querem implementar a república na Espanha (apenas pra lembrar, do latim: res=coisa publica=do povo). Mantenho a rubrica de "corta mais um fio": nessa hora, fios cruzam todo o palco, num emaranhado que remete a ruas, mas também a relações. Leio agora, três anos depois da estréia, o golpe de Estado dado no Brasil e uma ditadura se desenhando num horizonte próximo: remetem também aos direitos: um fio a menos, um direito a menos, uma chance a menos de escapar disso que se auto-denomina justiça. Os fios que limitam nossos movimentos em sociedade, acabam por ser também os fios que nos protegem dessa mesma sociedade. Mariana deve temer viver só não apenas por causa de liberais e anarquistas, como também por dever temer o Estado, o rei, o juiz.
Presa, Mariana é condenada à morte, mas pode se safar, se colaborar com a justiça:
"PEDROSA - Senhora, já é hora. Sabe qual é a sentença?
MARIANA - Sim, sei, mas imagino ser mentira. Tenho o pescoço curto para ser justiçada. E para que eu morra toda Granada teria de morrer?
PEDROSA - Eu não quero que morras, mas com a minha assinatura posso apagar o lume de seus olhos. Com uma penada e um pouco de tinta, fazer que adormeça um longo sono. Fale logo, que o rei daria indulto. Quais são, diga seus nomes. Vamos, fale! Com a justiça não se joga assim.
MARIANA - Não falarei. Quem é que manda dentro da Espanha vilanias destas? Que crime cometi? Por que me matam? Nessa bandeira de liberdade bordei o amor maior da minha vida e hei de permanecer aqui trancada? Hei de morrer?
PEDROSA - Mariana, pela força há de dizer, os ferros doem muito e uma mulher é sempre uma mulher.
MARIANA - Não falarei, já estou morta. Que sono mais longo sem sonhos nem sombras. Pedro, eu desejo morrer pelo que tu não morres, morrer pelo puro ideal que iluminou teus olhos, a liberdade.
PEDROSA - Queres morrer!
MARIANA - Não falarei, não quero que meus filhos me desprezem! Eu quero que meus filhos tenham um nome claro como a lua cheia! Eu quero que meus filhos tenham um respledor no rosto que nem anos nem rosto poderão apagar. E se eu delatasse, pelas ruas de Granada, este meu nome seria dito com temor."

Os tempos são outros, é certo. Não vivemos mais uma época de heroísmos ou idealismos: os perseguidos pela nossa ditadura-em-construção-via-judiciário não são presos por lutarem por nobres ideais - talvez o líder tenha alguns ideais a mais, certa vaga e tímida noção de coisa pública para todos, e é por isso que têm tanta gana e tanta dificuldade para agarrá-lo -, e antes da forca, preferem, sim, delatar (e eu, homem do século XXI, não os critico por isso). Forca, aqui, apenas como força de expressão: no século XXI não cabe bem a quem usa toga sair matando a torto e a direito (para isso existe polícia militar ou grupos de extermínio). E essa talvez seja uma diferença importante nas formas de torturas praticadas por forças do estado: quando a vida está em jogo, o jogo dura pouco: Mariana Pineda delata ou morre. Vladimir Herzog delata ou morre. Às vezes o torturador falha: Dilma não delatou e não morreu - pelo contrário, virou a algoz de seus próprios carrascos, impotentes diante do "sexo frágil" fragilizado e exposto que eles não conseguiram vergar (o voto de impeachment de Bolsomico foi mostra desse ressentimento dos sádicos impotentes). Nas delações atuais, ninguém teve a vida (biológica) ameaçada, ninguém foi posto sob a aporia "delate ou morra".
No século XX, os ferros contra o corpo são importantes: eles marcam a vida da vítima até a morte, que pode ser logo, se preciso for. No século XXI, os ferros estão presentes, mas ficam à distância, restringem a liberdade sem tocar a vítima: o corpo se mantém são, mas confinado: o preso é culpado por ser suspeito - nada de novo diante dos regimes totalitários do século passado. As delações premiadas que o senhor Moro consegue colher acontecem na mais estrita liberdade, em tudo o que há de ambíguo na palavra "estrita". O corpo, esse não sofre de fora: Odebrecht, Machado, Cerveró, ninguém levou um soco, um choque, nada: seus corpos seguem inviolados: no século XXI descobriu-se ser mais efetivo violar a humanidade (claro, isso não vale para quem já tem sua humanidade violada desde o nascimento, essas "quase-pessoas" que o Estado considera sem valor e sem direitos, torturados e assassinados pela Polícia Militar por serem sobras humanas, numa reedição pós-moderna dos infiéis da idade Média e Moderna, a se crer no beneplácito que o papa-óstia-mor de São Paulo dá às execuções extra-judiciais praticadas pelos seus subordinados). Violar a reputação, violar os direitos, violar a humanidade - não o corpo, marca visível do Antigo Regime e dos regimes totalitários e ditatorias do século XX. Se este sucumbe, é por fraqueza do suspeito-por-conseqüência-culpado, não por ação dos carrascos - minha mãe me lembrou, quando ficou escancarada a esbórnia judiciária em cima da Constituição federal, com a divulgação de áudios ilegais da presidenta da república (de bananas), que Dilma e Lula padeceram de câncer recentemente, e situações de estresse podem desencadear o retorno (agressivo) da doença. Por ora, essa tática ainda não surtiu o efeito desejado pelos manifestantes da camisa canarinho.
Outra marca de pós-modernidade no nosso golpe atual, que torna uma fala de Pedrosa démodé: quem é o rei que nos rege, ou que esta esperando ser içado ao trono? Quem é o rei que dará o indulto aos delatores? Temos os juízes do rei, Coronel Mendes e justiceiro Moro à frente, mas a serviço de quem eles agem? Das leis - e, conseqüentemente do povo, da democracia, do Estado de Direito -, é pornograficamente explícito que não se trata. Do presidente golpista, o pusilânime Micher Temer (por sinal, sua pusilanimidade é um prato cheio à extrema-direita golpista), ou dos social-democratas-defensores-do-golpe, tampouco. Os irmãos Marinho e a rede Globo, apesar de posarem de majestade, não têm cabeça para sustentar a coroa. Estaria no estrangeiro? Não creio - não apenas no estrangeiro. E ainda que se ache um grupo a quem toda esta nossa farsa seja encenada, não há um rei, não há o rei. No lugar do rei, entidades, forças sempre faladas (e efetivas), mas ocultadas na sua concretude nas palavras dos ideólogos desses mesmos ídolos, como bem definiu o teólogo Jung Mo Sung: os mercados, os investidores (sic), os empresários (rubrica na qual são incluídos rentistas e especuladores).
Ao cabo, fica difícil não atribuir a realeza ao monsenhor Capital - já desvendado em sua teologias desde Marx. Atribuir ao capital (nacional e internacional, financeiro e "produtivo") o atual golpe e ditadura-em-construção é simplista, admito, e pouco explica. Contudo, enxergar a situação atual - em que o golpe não possui (ao que se percebe) uma coordenação centralizada - como uma confluência de interesses determinados em última instância pelo capital (que não é só riqueza, é também - e principalmente - poder), ajuda a entender quem tem e terá direito ao indulto do rei (ou seria de deus?), quem não - é por isso, por exemplo, que Temer pode ser presidente (golpista) da República Bananeira do Brasil. E quem acha que querer discutir o capitalismo e suas "externalidades" em pleno século XXI é ter parado no tempo, bem vindo ao século XIX: convém rever a foto do gabinete do presidente golpista - homens brancos heterossexuais ricos escravocratas fazendo uso do Estado para interesses oligárquicos e particulares - e, mais, ler algumas das propostas futuristas desses aliados sobre papel da mulher (incluído aí direito ao corpo e a questão do aborto), trabalho escravo, educação, saúde, pena de morte...
Mas não falemos em crise, que só o trabalho liberta.


08 de junho de 2016

Democracia e representatividade do Brasil no século XIX, versão século XXI