Durante o dia de ontem ouvi por três vezes gritos de "vai trabalhar" ao longe. Estranhei. Imaginei que fossem ecos do discurso do presidente nos operários de uma obra aqui perto: subcidadãos sem direitos, ressentidos com os "privilegiados" que podem fazer quarentena e resguardar a si e a sociedade. À noite, assistindo ao Nassif na TV GGN, passo a desconfiar de que fosse a versão paulistana das caravanas que tem pressionado a volta à "vida normal" pelo país. Nassif hoje comenta que a fala do presidente serviu "para uma campanha nacional começar a mobilizar fanáticos por todo o país". Ao que tudo indica, os últimos movimentos foram todos articulados.
Primeiro começam a pipocar vídeos de empresários de sucesso, alguns "acima de qualquer ideologia" (como o fake dono do Giraffas, um playboy desautorizado (e demitido) pelo pai em seguida), falando que a quarentena só traz prejuízos ao Brasil e aos brasileiros, e se morrer dez mil, paciência, importante é a economia não parar; formadores de opinião "liberais", ou melhor, "acima de qualquer ideologia" se desdobram para mostrar com fatos que "não há vida sem economia" - como ironizou Marcelo Semer, faltou só citar a Bíblia: "no início era a verba". Alguns jornalistas chegaram a achar que a fala do dono do Madero - sócio do Luciano Huck, sempre bom lembrar - era um ato infeliz de alguém sem assessoria. Pelo contrário: há uma assessoria, profissional e muito bem equipada, por trás de todo esse movimento - inclusive a estratégia parece se repetir, numa dose de choque menor, nos EUA. A seguir, o discurso do presidente, falando exclusivamente para os seus, ecoando os empresários amigos e as correntes de WhatsApp. Junto, um tom nazista farsesco, patético: sua condição de super-homem, de "atleta" (por correr dos debates? Pelas incansáveis flexões de pescoço?): vão em paz e sem medo, porque o líder, que é um igual a vocês, é também imune a essa "gripezinha". As convocatórias para as caravanas certamente já estavam prontas quando o Véio Sonegador da Havan ou seus colegas de bolsonarismo soltaram seus vídeos explicando que vidas são só um número no balancete das empresas, não podem ser absolutizadas - fica a questão, posta também na internet: então, por que não matamos os 50 mais ricos e distribuímos sua riqueza, já que a economia vale o sacrifício de vidas? Por uma lógica utilitarista, é bastante sensato - o maior bem com o menor dano, no caso, de vidas, já que vida não pode ser tratada como um absoluto.
As caravanas pela volta à "vida normal" são uma demonstração da articulação das milícias de "cidadãos de bem" - ramo distinto de milicianos e crime organizado. Uma articulação ainda pequena, mas que sabe fazer barulho, ocupar espaço - e cuja possibilidade de ligação com criminosos (como os "gigantes" do motim do Ceará) deixa no ar um clima de medo. As ameaças de morte a prefeitos e a governadores são um teste de força - como foi no Ceará. O ponto é: ainda que Bolsonaro tenha ascendência sobre as baixas patentes militares, inclusive nas polícias militares, o comando destas ainda cabe aos governadores. São Paulo, desde Alckmin, já demonstrou que sua PM é utilizada como falange, uma polícia política atenta às conveniências do governador (exemplo que me vem rápido é a repressão aos protestos contra o golpe, na PUC). Irá Doria Jr mandar investigar e reprimir com severidade os que lhe ameaçaram? Seus subordinados seguirão suas ordens?
A disputa entre Bolsonaro e Doria Jr se dá entre dois projetos de fascismo, que tentam atrair para si simpatia do capital e o apoio popular e dos diversos estratos do Establishment, da burocracia estatal (necessária para a máquina fascista funcionar). Isso mostra o quanto a esquerda oscila entre estar perdida e buscar uma estratégia de baixa intensidade. Primeiro, porque ainda é extremamente Luladependente: as lideranças progressistas pós-Lula ou ainda estão verdes (Boulos), ou são destemperadas (Ciro), excessivamente conciliadoras (Dino) ou diminutas para a tarefa (Haddad e Freixo). Os governadores do campo, cientes da urgência do momento, preferiram se centrar em achar soluções e evitaram partir para o confronto, diferentemente de Doria Jr, que acabou por capitanear um movimento de racionalidade frente o "estado suicidário" (como explica Safatle em seu texto publicado na n-1 Edições, ou em seu curso "psicologias do fascismo", disponível no Academia.edu) que Bolsonaro e Guedes tentam implementar. Com isso, o fascista tucano abduziu muitas das bandeiras típicas das esquerdas.
Não se tratava de ir para um tudo ou nada, mas de marcar claramente uma posição. Burocratizada, a esquerda não o fez. Após a guerra contra Bolsonaro e o coronavírus, outra batalha entrará em disputa, contra um fascismo capaz de ir além da base hidrófoba do bolsonarismo - precisamos desde já pensar em estratégias e começar a pô-las em ação.
27 de março de 2020
rEflexões aleatórias sobre questões aleatórias. nÃo são exatamente opiniões, são antes tentativas de entender o mundo que me habita.
sexta-feira, 27 de março de 2020
segunda-feira, 16 de março de 2020
São Paulo no primeiro dia de quarentena
Acordo com o sinal da escola em frente da minha casa. Porém hoje o Mozart do sinal toca sozinho: não havia a tradicional algazarra que o acompanha e vai aos poucos arrefecendo - que me lembra minha infância, a Escola Dona Frida na esquina. Sem víveres suficiente para uma quarentena mais longa (que sequer sei se cumprirei, dado obrigações de trabalho), me aventuro pelo centro de São Paulo, na zona cerealista - eu poderia, talvez, ter comprado pela internet, terceirizando, assim, meu risco, mas quis também ver como estava o clima da cidade, para além do calor seco da manhã.
Em tempo: não costumo entrar nesses temores coletivos com muito afinco - a gripe suína, por exemplo, não achei que valia a pena me vacinar -, mas tenho me preocupado um pouco mais com o coronavírus por conta do impacto na saúde pública, da necessidade de internação, apesar da baixa letalidade - e com minha mãe, que não parece, mas é do grupo de risco.
Para minha surpresa, no centro, o dia transcorria sem grandes mudanças: movimento normal nas ruas e nos comércios da região, alguns transeuntes com máscaras, a grande maioria orientais (creio eu que chineses e taiwaneses, cujo senso de comunidade, desconfio, ainda está mais arraigado - ao menos é minha experiência com o círculo da minha ex-namorada). Também eu estava sem máscara, e nem me dei ao trabalho de procurar em uma farmácia, dada duas conversas que ouvi no caminho do metrô, pessoas ansiosas perguntando aos mascarados onde haviam conseguido (ao regressar, achei uma perdida, que recebi para assistir ao excelente espetáculo A Parede, do 28 Patas Furiosas). Me assustou, contudo, o fato dos atendentes estarem todos - salvo uma oriental no mercado municipal Kinjo Yamato - sem máscara: oito horas em contato próximo com centenas, talvez milhares de pessoas, cada comércio é um foco de propagação da doença. Em um dos estabelecimentos, um funcionário comentava em tom jocoso que ali todos tinham seguro de vida - como se isso assegurasse a vida de quem parte e não apenas recompensasse quem fica. Mas é o ponto onde estamos: dinheiro vale mais que vidas, e as próprias vidas descartáveis aceitam isso como natural.
O mais estranho, entretanto, é a sensação de andar na rua, desprotegido e sem saber se a pessoa que parou ao seu lado para esperar o sinal abrir não estaria contaminada, se não é na hora que eu recebi o bom dia da caixa que terei contraído o vírus. Uma sensação estranha e muito desagradável e incômoda de se sentir ameaçado e não saber por quem, sendo obrigado a desconfiar, a temer todos. Algo que nunca havia sentido antes, em minhas muitas andanças por São Paulo, nem mesmo quando me aventurei de madrugada pela chamada Cracolândia, onde ao menos se tem noção de por onde fugir. Já hoje, no quente sol do meio dia, não como antever de onde vem o perigo e, portanto, as rotas de fuga - uma sensação mais que propícia para que o estado ou algum ente equivalente lance mão de controle de toda a população, como forma de aplacar essa vulnerabilidade extrema. Biopolítica sentida na pele.
Ao regressar a minha casa, em minha bolha virtual de classe média, meus conhecidos aderiram à quarentena, abnegadamente, e faziam da experiência uma espécie de reality show para instagram, de performance medíocre de exposição do ego: dois dias e reclamam de tédio, como se não passassem três dias trancados em casa, fazendo maratona de seriados; "momento faxina", como se fosse algo genial fazer uma faxina na casa; vontade absurda de começar a fazer sexo grupal - justo agora que não dá pra sair de casa -, e uma miríade de exemplos de como classe média sofre. Sofre e é consciente: porque, claro, o que não faltou foi defesa de que se dispensasse e pagasse as diaristas, e muitas críticas a quem ousou sair de casa com o coronavírus no ar - como as mães que largaram seus filhos (já que não tem aula) para ganhar o pão do dia, ou os entregadores dos produtos que eles compraram pela internet.
Em tempo: não costumo entrar nesses temores coletivos com muito afinco - a gripe suína, por exemplo, não achei que valia a pena me vacinar -, mas tenho me preocupado um pouco mais com o coronavírus por conta do impacto na saúde pública, da necessidade de internação, apesar da baixa letalidade - e com minha mãe, que não parece, mas é do grupo de risco.
Para minha surpresa, no centro, o dia transcorria sem grandes mudanças: movimento normal nas ruas e nos comércios da região, alguns transeuntes com máscaras, a grande maioria orientais (creio eu que chineses e taiwaneses, cujo senso de comunidade, desconfio, ainda está mais arraigado - ao menos é minha experiência com o círculo da minha ex-namorada). Também eu estava sem máscara, e nem me dei ao trabalho de procurar em uma farmácia, dada duas conversas que ouvi no caminho do metrô, pessoas ansiosas perguntando aos mascarados onde haviam conseguido (ao regressar, achei uma perdida, que recebi para assistir ao excelente espetáculo A Parede, do 28 Patas Furiosas). Me assustou, contudo, o fato dos atendentes estarem todos - salvo uma oriental no mercado municipal Kinjo Yamato - sem máscara: oito horas em contato próximo com centenas, talvez milhares de pessoas, cada comércio é um foco de propagação da doença. Em um dos estabelecimentos, um funcionário comentava em tom jocoso que ali todos tinham seguro de vida - como se isso assegurasse a vida de quem parte e não apenas recompensasse quem fica. Mas é o ponto onde estamos: dinheiro vale mais que vidas, e as próprias vidas descartáveis aceitam isso como natural.
O mais estranho, entretanto, é a sensação de andar na rua, desprotegido e sem saber se a pessoa que parou ao seu lado para esperar o sinal abrir não estaria contaminada, se não é na hora que eu recebi o bom dia da caixa que terei contraído o vírus. Uma sensação estranha e muito desagradável e incômoda de se sentir ameaçado e não saber por quem, sendo obrigado a desconfiar, a temer todos. Algo que nunca havia sentido antes, em minhas muitas andanças por São Paulo, nem mesmo quando me aventurei de madrugada pela chamada Cracolândia, onde ao menos se tem noção de por onde fugir. Já hoje, no quente sol do meio dia, não como antever de onde vem o perigo e, portanto, as rotas de fuga - uma sensação mais que propícia para que o estado ou algum ente equivalente lance mão de controle de toda a população, como forma de aplacar essa vulnerabilidade extrema. Biopolítica sentida na pele.
Ao regressar a minha casa, em minha bolha virtual de classe média, meus conhecidos aderiram à quarentena, abnegadamente, e faziam da experiência uma espécie de reality show para instagram, de performance medíocre de exposição do ego: dois dias e reclamam de tédio, como se não passassem três dias trancados em casa, fazendo maratona de seriados; "momento faxina", como se fosse algo genial fazer uma faxina na casa; vontade absurda de começar a fazer sexo grupal - justo agora que não dá pra sair de casa -, e uma miríade de exemplos de como classe média sofre. Sofre e é consciente: porque, claro, o que não faltou foi defesa de que se dispensasse e pagasse as diaristas, e muitas críticas a quem ousou sair de casa com o coronavírus no ar - como as mães que largaram seus filhos (já que não tem aula) para ganhar o pão do dia, ou os entregadores dos produtos que eles compraram pela internet.
16 de março de 2020
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