quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cena urbana

O sinal fecha. Olho à minha direita. Ao fundo, o brutalismo da estação Armênia interrompe qualquer horizonte possível. Já a praça ao lado parece um acampamento de guerra: é um acampamento dos desvalidos, com precárias barracas improvisadas. Pessoas que me aparentam sem horizontes nesta sociedade. Garoa, mas isso não espanta dos bancos os homens que ali passam o tempo (não vi mulheres). Sobre o que será que conversam? Matam o tempo, à espera que este os matem (a morte violenta seria a outra alternativa)? A praça parece uma área proibida a quem não é um miserável, não por imposição deles, mas por medo nosso. No ponto de ônibus da praça, sete pessoas se protegem da garoa. Um homem - um dos "moradores" desse lugar de passagem - se aproxima e tenta cumprimentar algumas dessas pessoas, sem muito sucesso. Passa, então, a dançar estilo o Michael Jackson e tenta novamente cumprimentar as pessoas. Três o fazem, os demais o ignoram ou se afastam. Reparo que o homem veste uma luva preta na mão direita, dessas que se usa em restaurante. Ele pula na frente do carro e começa a dançar para nós. Dura uns trinta segundos sua apresentação. Imagino que vá pedir uma moeda depois disso, mas ele simplesmente sai e vai ao encontro dos seus companheiros de abandono. O sinal abre e a cidade volta a passar indiferente pela janela do carro.



23 de outubro de 2024

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Calvin, meu gato [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Algo que sempre falei dos meus gatos é que eles são super carinhosos, em especial o Calvin - ainda que Haroldo não fique para trás. Goreti, amargo, discorda: diz que não são carinhosos, são carentes. Carinhosos ou carentes, estão sempre me pedindo carinho.

Um dos momentos que Calvin não perde é quando vou fazer café: é ele escutar o barulho da chaleira sendo aberta e não importa onde esteja, o que esteja fazendo, se encaminha para a cozinha, dá dois miados e se planta ao meu lado, querendo carinho - o que faço, é claro.

Ao menos assim eu imaginava. Se Goreti tentava - sem sucesso - desfazer minhas ilusões falando que eram carentes, Brotinho, semana passada resolveu dar cabo a essa minha história de gatos carinhosos, que adoram receber agrado quando vou fazer café.

Estava eu preparando um café para nosotros quando lá veio Calvin, com seu caminhar típico, e se postou diante de mim, se oferecendo para o agrado tradicional. Diante do meu enésimo comentário de como eles são carinhosos, especialmente ele na hora de preparar o café, Brotinho não se aguentou:

- Desculpa dizer isso, mas você já reparou na cara de enfado que ele faz toda vez que vem para a cozinha nessa hora?

- Cara de enfado?

- É, repara: ele não está nem um pouco feliz.

- É que eu ainda não fiz o agradinho de sempre nele, não é, Calvin?

- Não, ele não vem aqui por carinho...

- Então por o que ele viria?

- Repara na carinha dele: parece muito mais que ele está supervisionando você, cuidando pra você não fazer nada de errado.

De início não quis acreditar, mas comecei a reparar, e de fato, diferentemente das outras situações em que ele me busca por carinho, essa hora do café (e quando vou cozinhar também, ainda que cozinhe só de vez em quando) a cara dele realmente é diferente, parece haver aquele cansaço das obrigações fastidiosas. Mas não desisti do meu otimismo. Hoje contei o fato ao Goreti:

- Acredita que meu gato, de tão carinhoso, se dá ao trabalho de ir até a cozinha acompanhar eu fazendo café, não importa o que ele esteja fazendo?

- Sei como é. E isso não é carinho, é desconfiança, mesmo. No mínimo você já se queimou cozinhando e ele não bota fé que o dono não vá se machucar. Ele não confia muito em você, não.

Goreti é um cara amargo.


09 de outubro de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.