Max Weber, balizado pela noção kantiana de uso público e privado da razão, desenhou seu burocrata ideal-típico, algo próximo de um parafuso eficiente e resignado (e satisfeito?) na máquina bem azeitada do Estado. Gyorgy Lukacs tomou emprestado a construção do amigo para fazer uma análise crítica do capitalismo, em especial do seu sistema de justiça racional, pautado pela previsibilidade dos resultados, independente de quem julga. Os seguidores das concepções do filósofo húngaro (dessa fase) - Adorno, Horkheimer, Marcuse, Debord e outros - aprofundaram a crítica, pondo esse princípio de cumprimento de dever baseado na razão pública como esteio do horror nazista tanto quanto o mecanismo que sufoca e asfixia a vida do cidadão comum na sociedade burocratizada, controlada e codificada do capitalismo tardio - não apenas os funcionários do estado, que o diga o atendente do McDonald's padronizado até na forma como segura o esfregão para limpar o chão.
A noção de uma justiça racional e de um corpo burocrático dotado de uma “ética pública” que se sobrepõe às preferências e valores individuais não chegou a se efetivar plenamente em lugar algum, mas nestes Triste Trópicos ganha ares de alucinação, tamanha a distância entre a prática e esse ideal normativo: aqui não se trata apenas de interpretar a lei conforme a situação (ou o rosto do "cliente"), mas de inventar leis e crimes conforme o desejo do juiz - que o diga os "atos de ofício indeterminados" que garantiram o "triunfo da vontade" do então juiz/justiceiro Moro e sua equipe de procuradores delegados e outros agentes do estado, personificação de uma parcela da elite brasileira (e seus lacaios/sicários).
Na justiça brasileira a concepção de um juiz aplicador de leis decididas por um legislativo representativo da população, uma peça na engrenagem, não faz sentido, e nem precisa dos holofotes que Moro teve: cada juiz uma constituição, um código penal, um código civil: a depender da vara, um processo sairá vencedor ou perdedor, praticamente independente do que diz a lei e do que é argumentado pelo advogado - e muito dependente de quem é o impetrante.
Curiosamente, as duas juízas que ganharam destaque com a Lava Jato se comportam como peça numa engrenagem, seguem o que foi determinado com destemor. Infelizmente a determinação não se baseia nas leis, pelo contrário, está em contradição a elas, por temor da desaprovação das hostes fascistas - daí seguirem os mandos e desmandos do chefe desse “estado dentro do estado”, hoje ministro da justiça (sic).
Recordo que ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, muita gente se surpreendeu com o fato de Moro ser capaz de se comprometer com um governo abertamente machista, misógino e homofóbico. Sede de poder foi a explicação que pareceu mais razoável - poucos foram os que apontaram identidade de visão de mundo entre Moro-Lava Jato e Bolsonaro: havia apenas diferença de modo de apresentação das convicções (se um tosco power point ou uma verborragia agressiva tão tosca quanto).
O comentário de Moro, palhaço augusto do presidente (ele que se achava O branco em Curitiba), no Twitter, sobre a lei Maria da Penha, apenas reforça que a identidade com o capitão expulso do exército não está apenas no ódio ao "esquerdismo" (seja lá o que significa no fascismo tupiniquim), à democracia e ao estado de direito, está também na visão que tem das mulheres. Isso ficou explícito no tuíte, mas pode ser observado na Lava Jato e na #VazaJato.
Disse o herói dos fascistas: “Talvez, nós, homens, percebamos que o mundo está mudando e, por conta dessa intimidação, infelizmente, por vezes, recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”. Nem cabe aprofundar nesse besteirol. Apenas ressalto que, para sua sorte, as mulheres do seu entorno não os intimidam, de modo que os homens podem manter sua pretensa superioridade que não existe mais - mas segue existindo e não apenas como pretensa, nas práticas do grupo. E isso sem espancamentos, veja que avanço civilizacional!
Na República de Curitiba poucas são as mulheres com alguma voz. Melhor: poucas são as mulheres. Conforme o site do MPF, de 19 procuradores que já integraram a força tarefa em Curitiba, apenas quatro são mulheres. Nunca em papel de destaque, e ainda substituídas a pedido do chefe, por ser muito fraca, como o caso de uma das procuradoras. Voz das mulheres, só as que ecoam a voz dos chefes - homens, brancos, heterossexuais (ao menos para o público): a elas cabe o papel subalterno, submisso - visão afim tanto ao nazifascismo “clássico”, do século XX, quanto ao do atual chefe de Estado do Brasil, quanto aos princípios bíblicos defendidos por agentes públicos “terrivelmente evangélicos”: lembro a história dos pais de um amigo de infância, que frequentava a mesma igreja que Dallagnol (sim, fomos paridos na mesma terra), cujo marido cobrou submissão da esposa ou o divórcio. Entre ajudar a cuidar da mãe doente ou preparar o jantar para o macho provedor, amparada pelo pastor, ela se manteve servil ao marido. A forma como os procuradores falam em usar as esposas como laranjas nem parece estar lidando com alguma pessoa, muito menos próxima: é um instrumento para lucrar dando palestras motivacionais de empreendedorismo (com que experiência?).
Quando as mulheres assumem algum protagonismo, o fazem de maneira masculinizadas e abusando da perversidade - lembram os casos dos judeus postos para cuidar dos campos de concentração, que se mostravam mais firmes que os nazistas. Não surpreende: são mulheres e precisam compensar o que seus colegas vêem como "falha". Recebem reforço positivo das hordas fascistas (em pesquisa no DuckDuckGo, sites de direita falam que as juízas do caso seriam exemplos de "empoderamento feminino"), mas sua perversidade e sua grosseria desmedida apenas sinalizam sua insegurança, indicam o quanto sabem valer nada fora do cargo, da aceitação do chefe e dos outros machos da horda, e da função que ocupam por causa dessa submissão ao todo poderoso Moro/Globo. Negar a humanidade do outro a ponto de pôr sua vida em risco - transferindo Lula para um presídio comum ou levando Cancellier ao suicídio - é a assunção implícita de quem tem sua humanidade negada, que elas são vistas como meio, e aceitam isso como destino, exultante de serem instrumentalizadas para fins outros - e não se trata aqui de razão pública, mas de negação da razão prática, em falta de toda ética, até a do crime. Impingir ao outro o sofrimento que sofre é uma forma de tentar compensar a própria impotência - mas a impotência segue. Não precisava ser assim, afinal são pessoas bem formadas (em tese), com toda estrutura para terem um pensamento crítico e reflexivo - não mero reflexo acrítico das estruturas patriarcais que as violam.
Diferente da experiência alemã de 1930/40, não se trata do paroxismo do princípio weberiano do burocrata racional, mas da sua perversão.
09 de agosto de 2019
PS: Talvez alguém tenha notado que o nome das mulheres não aparece aqui, foi proposital diante do papel que aceitaram assumir.
PS: Talvez alguém tenha notado que o nome das mulheres não aparece aqui, foi proposital diante do papel que aceitaram assumir.
Sem comentários:
Enviar um comentário