terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.

domingo, 18 de março de 2018

O que conseguimos escutar?

Reconheço que foi inesperada toda a reação à minha última crônica, "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?". No Nassif On Line/Jornal GGN, foram mais de cinquenta comentários, a maioria me criticando e querendo ver os funcionários dos Correios se darem mal - Kassab, Meirelles e cia devem rir muito ao ver zé ninguém batendo em zé ninguém enquanto eles se lambuzam. Contudo, para além do ódio aos carteiros - que eu não entendo e me surpreende -, noto que pus a carruagem na frente dos bois, e não devia perguntar se somos capazes de escutar o outro, e antes, mais simples: somos capazes de escutar?
A ignorância não é fruto de falta de educação formal (isso contribui, mas não é condição necessária, muito menos suficiente), nem privilégio destes tempos pós-modernos. Entretanto, me pergunto o quanto a ausência a conversa "real" (em oposição à virtual) não tem deteriorado uma capacidade desde sempre pouco desenvolvida nestes Tristes Trópicos, que é a arte de dialogar. O quanto a ausência da voz numa discussão nos impede de escutar nuances do discurso do outro (um ceticismo receoso pode soar como uma recusa intransigente na internet), assim como a permissão de dizer o que quiser a qualquer momento que a internet nos dá, sem qualquer limite que não seu tempo e sua paciência, nos conduz ao paroxismo de impedir escutar o discurso do outro. 
Lemos um "textão" no Fakebook ou um artigo na internet caçando os 140 caracteres essenciais e logo despejamos o que está na agulha, sem pensar - um tiro não exige reflexão, exige no máximo reflexo. No exemplo que me cabe, só o título de minha crônica anterior já me toma 64 caracteres, as palavras-chave "greve correios defesa trabalhadores apoiaram o golpe", já me gastam outros 52, "pato ódio desfazer" levam os 24 restantes - telegramas talvez exijam maior capacidade de raciocínio que um twitter. Caçado um "twitter elementar" do texto, é hora de repetir o que se acha - na ilusão (ensinada pela escola) de que repetição seja pensar. E não é por repetir a si próprio que isso se torna reflexão: o fato de ter refletido uma primeira vez para se chegar a uma conclusão não implica que esteja pensando as outras 999 vezes que se repete, até porque, é de se imaginar, que interlocutores e contextos mudem, exigindo repensar a própria estratégia argumentativa, quando não o próprio núcleo do argumento, diante de novas réplicas.
Por uma questão de saúde mental e emocional, e para manter um mínimo de fé na humanidade, evito ao máximo ler comentários de internet, seja onde for. Exceção feita aos dos textos que publico, onde busco interlocutores, com retificações ou ratificações pertinentes; ou mesmo para tentar entender possíveis falhas de comunicação da minha parte. Boa parte dos comentários ao meu texto sobre a atitude para com os funcionários dos correios foi de críticas - o que em si não seria um problema -, porém feitas de uma forma tão crua que deixou evidente que as pessoas não eram capazes de "escutar", de compreender o que elas próprias escreviam - e não creio ser ingenuidade minha acreditar nisso e ao invés de crer que, na verdade, são pessoas da pior índole se fazendo passar de progressistas e/ou esquerdistas. Aquilo que eu havia alertado em meu texto foi exemplificado nos comentários: o ódio fascista, o desejo punitivista de sangue do inimigo a qualquer custo, o "se esteve contra mim sempre será meu inimigo". Curto, grosso, direto, bruto, tosco, ignorante. Mas de uma ignorância que não mobiliza para ampliar os horizontes, uma ignorância orgulhosa de sua própria limitação, que busca afugentar (quem sabe matar?) todo aquele que incomode seus seguros e estreitos limites (e antes que me acusem de neoplatonismo tosco, impressão que esta frase fora de contexto pode passar, sugiro ler meu texto anterior). Me vem a imagem de Bush, ainda que para os dias atuais ele seja um intelectual. Reconheço: quando escrevo um texto como "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?" meu desejo é que me provem o quanto estou equivocado, o quanto meu umbigo não permitiu perceber nada claramente; entretanto, os comentários foram iradas confirmações da minha análise: a forma fascista de (não) pensar está vencendo. E desconfio que as pessoas não estejam se dando conta disso. Logo, se são incapazes de escutar a si próprias, é demais pedir para que ouçam o outro. Resta a força bruta - o "cala-te ou te arrebento".
Três aspectos me chamam a atenção nas respostas recebidas: a ausência de nuances, a petrificação de posições (para a eternidade?) e um mal digerido cristianismo - talvez tendo como raiz uma profunda descrença no ser humano e na humanidade. Meu chamado para um "ouça, entenda, converse, acolha" trabalhadores explorados por um governo ilegítimo, que implica em um chamar aberto mas condicionado para a luta conjunta contra os golpistas, ao que tudo indica foi entendido como um perdoe e aceite tudo - o "dê a outra face" de Jesus. Mais: se uma parte dos funcionários dos correios foram favoráveis aos golpistas, todos os funcionários foram favoráveis, e uma vez que foram favoráveis, sempre serão favoráveis. É seu "locus naturalis", diriam os filósofos medievais: assim como um ex-presidiário sempre será presidiário, não importa que tenha cometido um crime num determinado contexto e pagado sua dívida junto à sociedade, não merece mais confiança, nunca. (Aqui abro um parênteses, não todo desprovido de propósito, para agradecer a educação dada por minha mãe e meu falecido pai: uma educação grandemente desprovida de pré-conceitos, sociais, étnicos, de gênero, ou o que for; nunca aprendi que um negro pobre da periferia seja "do bem", assim como nunca aprendi que um branco rico seja "do mal", nem que uma pessoa não possa mudar, para melhor ou para pior, com os anos, que o diga muitos ex-comunistas). 
Ouso a hipótese de que, para além da forma fascista de enxergar o mundo, a visão estanque de si e do outro possa ser consequência da nova tendência da esquerda, as pautas identitárias. Longe de desqualificar esse tipo de pauta, muito pelo contrário: é de extrema importância que os oprimidos ganhem voz para falar em alto e bom som que além dos aspectos econômicos salientados pelo marxismo, há, sim, questões fenotípicas, identitárias, que geram doses extras de opressão sobre determinadas populações. Contudo, ao se pôr tais pautas como figura de proa, desprovida de visão mais ampla dos jogos de forças que criam e oprimem tais identidades, não é preciso dois passos para incorrer em generalizações e em essencializá-las como estratégia para cerrar fileiras - como afirmar a sororidade acima de qualquer contexto social, como se a opressão à mulher fosse igual em qualquer caso, Carmen Lúcia, Marcela Temer, Marielle Franco e a faxineira negra do mercado que quer votar no Lula e achar um marido que a proteja -, até cair num narcisismo identitário, carente de sempre ter um inimigo bem identificável e da necessidade de reforçar sempre seu predomínio sobre todas as outras pautas.
A escuta passa a ser treinada, então, para encontrar o inimigo, o infiltrado. Assim como não se escuta quem se põe como crítico, cético ou antagonista (atenção! estou falando de gente comum, não de fascistas convictos, como os do blog de mesmo nome), perde-se a capacidade de escutar quem não repete exatamente sua cantilena, espantando possíveis aliados - e mesmo quem diz representar. 
Pior, essa escuta estritamente policial do outro (ou religiosa, do padre ou pastor em busca dos pecados alheios) se volta para si mesmo, porque se escutar pode implicar em dar espaço para discordâncias, fissuras com as generalizações identitárias, o que - dizem algumas correntes - seria o fim de toda a luta identitária e o retorno da opressão mais brutal. A isso se alia a repetição de ideias prontas, tornando assim desnecessário que se escute, uma vez que se sabe o que vai falar. Consequência até natural, uma vez que quem não sabe ouvir não será capaz de falar.
Realmente não era o ponto aonde eu esperava chegar ao iniciar esta crônica, mas temos, ao fim e ao cabo, aquele discurso ideológico da velha esquerda, sintetizado por Harold Rosenberg: "O comunista pertence a uma elite dos conscientes. É, portanto, um intelectual. Mas uma vez que toda a verdade foi-lhe conferida automaticamente mediante a sua adesão ao Partido, trata-se de um intelectual que não precisa pensar (...). Desde que somente ele possui a resposta certa, em toda parte o comunista tenta controlar a atividade dos outros". Por isso, repito o que falei em minha última crônica, com a mesma citação de Bernard Shaw: a necessidade da educação para a democracia: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de que todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". Porém me resta a dúvida: quantos estão dispostos a porem em risco sua identidade garantida pelo grupo, seus frágeis egos entrincheirados em generalidade heterônomas, e se pôr a escutar a si próprios, seus desejos e seus medos, e se abrir ao diálogo franco com o outro?

18 de março de 2018