Foto de André Conceição. Instagram: @andre.conceicao.ac |
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.
24 de abril de 2020