quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Na vida (quase) como no cinema

Nunca li nenhum livro nem assisti a nenhuma peça do Bortolotto – o dramaturgo baleado em fins de dezembro na praça Roosevelt, em São Paulo –, ainda que pretenda fazê-lo em breve. A primeira vez que ouvi falar dele foi no dia 7 de novembro: uma amiga, a Mariana, comentando algumas tentativas literárias minhas que lhe mandara – sempre mundo-cão – falara do agora famoso autor. Dizia ela que seus textos a empapuçavam: “Na primeira vez, eu acho legal, mas parece que depois vêm variações sobre o mesmo tema, fica um cara com uma arma apontada pra cabeça, tomando cerveja na sala ouvindo jazz, falando de quando comeu a vizinha, e como todos os amigos que eram beatniks agora são empresários. Um culto à boçalidade e à inércia, sabe?”. Não sei dizer da sua obra, mas a sua reação, o seu “atira, filho da puta”, quase o “atire no dramaturgo” que serve de título ao seu blog, ajudaram a reforçar a idéia passada pela Mariana.

Culto à inércia porque, até onde consegui pesquisar, Bortolotto nunca se mexeu para tentar alterar a realidade social, como o faz Ferréz. Não cobro aqui engajamento dele, mas se esteve quieto até então, não seria com uma arma apontada que mudaria essa inércia.

Já a boçalidade está não só no ato – que tenta justificar por estar bêbado – mas por achar que não fez de todo mal: “Eu só sei que se tivessem mais alguns amigos malucos como o Carcarah naquele bar, a gente tinha enfiado o revólver no rabo daquele filho da puta. Eles acham que nós somos um bando de viadinhos sensíveis e indefesos”, diz ele em seu blog. Para além do estúpido do que foi dito, não é difícil de entender a reação dos assaltantes: para realizar esse tipo de assalto, muito provavelmente são do tipo de pessoas que só têm voz, só conseguem impor respeito pelo medo que a arma impõe. Imagine o que não deve ser para alguém que nunca foi nada, ser negado – de uma maneira acintosa – até quando tem a possibilidade de ser. Soa estranho a alguém que cresceu na periferia e escreve sobre o mundo-cão não saber coisas desse tipo. Ou será que ele quis provar que a vida imita a arte?

PS: sugestão de ótimo filme mundo-cão: “O homem do ano”, de José Henrique Fonseca.

Campinas, 14 de janeiro de 2010


publicado em www.institutohypnos.org.br

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