Esteve em cartaz na Galeria Olido, e entra agora no Teatro Alfredo
Mesquita (31 de agosto a 16 de setembro), "Experimentos cenográficos", do Balé da Cidade de São
Paulo, com a direção
artística de Lara Pinheiro. São quatro coreografias que, conforme o
programa, visam “proporcionar uma perspectiva futura para jovens
talentos e alimentar o mercado de dança com novos coreógrafos”.
Fazem parte do programa “No' toque”, de Henrique Lima, “Papilon”,
de Igor Vieira, “Aquele que vê”, de Liliane de Grammont e
“Tempo”, de Fernanda Bueno. As quatro coreografias muito bonitas,
as três primeiras tendo em comum uma tensão muito grande – ainda
que por motivos diferentes.
“No' toques” parece ter uma tensão mais bruta: corpo em diálogo
com os sons, sem apontar para uma harmonia –
ainda que tensa –, como em “Papilon”, que chama a atenção
pelo seu quê de onírico, e um duo mais que erótico, sensual.
Me detenho aqui em “Aquele que vê”.
A descrição – que começa com uma frase de Lacan, “o Outro é
aquele que me vê” – comenta: “O que eu seleciono com o meu
olhar, revela quem sou. Recorto a realidade e a reinvento. O outro, é
uma abstração. Vejo e sou, sou visto e existo para o outro.”
Um das coisas que logo me chamou a atenção nesta obra não foi a
questão da posição de quem vê, mas de quem é visto, aquele que é
selecionado e recortado por esse olhar do Outro, e que só tem
existência por causa dessa visão que faz emergir dadas figuras do
que até então era fundo.
Há uma divisão bem delimitada entre o masculino e o feminino, e uma
forte fragrância de machismo nessa divisão: os homens, vestidos de
calça e camisa azuis, estão sentados nas margens do palco, enquanto
as mulheres, em trajes pequenos, ocupam o centro ou circulam também
pela margem. A diferença nos trajes deixa uma forte impressão de
vulnerabilidade das mulheres. A diferença nas localizações
reforça a posição de senhor do homem – se pensarmos numa
dialética hegelo-marxista –, com as mulheres, apesar da sua
vulnerabilidade, ocupando o centro do palco, da ação. Ademais, se o
olhar do outro seleciona o que terá existência – e aqui o como o
Outro se apresenta é importante para entrar no recorte –, aquele
que pode ser olhado é cativo de um olhar que não o reconhece
necessariamente, e por isso é obrigado a se sujeitar a estar nesse
centro, vigiado de todos os lados, tendo que agradar, chamar a atenção, atrair.
O fato da coreógrafa ser mulher não deve ser desprezado.
Entretanto, é curioso notar que a vulnerabilidade das mulheres em
seus mini-trajes existiria igualmente se ao seu redor estivessem
mulheres vestidas de calça e camisa azuis: antes de apontar para um
culpado, um bode expiatório – os homens, o machismo –, a coreografia abre para a questão da
relação entre seres genéricos, a relação entre papéis sociais –
encarnados por homens e mulheres, mas que não são naturalmente de
um ou de outro. Em suma, complexifica a questão de gênero a partir
do que um dia foi seu símbolo mais imediato – o vestuário –, e
o faz sem inverter essa simbologia.
Se as posições no palco, no início e em boa parte da apresentação,
cheiram a dominação masculina, a dominação de quem, na verdade,
está à margem, as várias coreografias têm um toque feminino,
mesmo as com os homens – uma proposta de “feminilização” e
não de “masculinização” como resolução dessa dominação?
Nos duos (um no início, outro no final), uma tensão erótica muito
grande – e sempre com a impressão de dominação masculina, então
finalmente em ação de comando. No duo final, mais do que tensão,
violência, com a bailarina, cercada inicialmente por dois homens,
ainda mais exposta ao ter sua roupa arrancada. A violência logo se
transmuta em tensão erótica, deixando no ar a dúvida se haveria
sexo asséptico e politicamente correto – um contrato entre duas
pessoas para usufruto das faculdades sexuais do outro, mais ou menos
como disse Kant sobre o casamento, em fins do século XVIII – ou se as dissimetrias,
desde que tidas seus devidos espaços e momentos, não são parte da
sexualidade humana contemporânea.
A coreografia termina ao som de criança rindo, como a indicar uma
grande inocência em tudo aquilo, no sentido de desfrute do presente
e não em engessamentos do futuro em promessas românticas de felizes
para sempre. Claro, antes disso houve uma série de momentos de
dominação, de recorte do Outro, de violência, que não podem ser
esquecidos – resta saber se cabem serem carregados como máculas
que impedem o desabrochar pleno do presente.
São Paulo, 27 de agosto de 2012.
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