terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Os imbróglios do café na empresa [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

 Trocaram o diretor geral da empresa, e ele chegou querendo mostrar serviço - e seu jeito de trabalhar.

Por muito tempo, café era uma briga aqui no setor, com uma cafeteira elétrica para quinze xícaras (e cinquenta pessoas) e o pó por nossa conta. A primeira disputa era qual café comprar: se extra-forte, que é mais barato, ou o tradicional mais barato, que é quase um extra-forte. A segunda disputa era quem faria: todo mundo queria, porém só quando o sono batia forte que alguém se habilitava a pegar o bule, ir até o banheiro encher de água, pôr o pó, derramar a água, ligar a cafeteira. Terceira disputa: com capacidade para quinze xícaras pequenas, quando muito o café dava para seis pessoas - e o clima pesava quando quem tinha feito o café acabava tendo que fazer algo e não voltava a tempo para encher sua caneca.

Isso foi resolvido com o antigo diretor, que soltou uma circular dizendo “Se é para o bem da empresa e felicidade geral dos funcionários, diga que teremos máquinas de café em cada setor”. Na verdade não foi bem assim, foi só um aviso de que haveria máquinas nos setores, dessas de expresso automático, que moem os grãos na hora. Comemoração, alegria: café expresso e em grãos, sem galhos, tocos, folhas e sabe-se lá o que mais; sem mais disputas de quem vai fazer, quem vai conseguir tomar. Café de melhor qualidade e de graça - e para todos.

Isso era o que imaginávamos, até chegarem as máquinas e os grãos. Que raios de grãos eram aqueles? Onde tinham conseguido aquilo? Era café mesmo? Esses foram alguns dos questionamentos que nos fizemos.

Houve quem, ainda assim, aprovou a mudança - ou ao menos bebia aquele café. Não foi meu caso - e de meus colegas de bancada. Mantivemos um mínimo de dignidade, temos ainda um resto de auto-estima, apesar do estômago calejado por anos de bandejão nos permita encarar pedras na carne moída sem sentir, caso não enrosque no dente. Achamos um restaurante aqui do lado com café razoável e barato e viramos clientes assíduos - apesar dos olhares feios do chefe. Houve quem preferisse trazer sua própria máquina (de cápsula), sendo um deles o próprio chefe do setor.

Uma das primeiras atitudes que o novo diretor geral tomou foi com relação ao café. Sob a desculpa de que no recesso o consumo diminui, porque trabalhamos com metade da equipe, resolveu interromper o contrato com a empresa das máquinas. Por esse período? Não! Por tempo indeterminado. Bom seria que o recesso também fosse por tempo indeterminado. O argumento é que “a medida visa otimizar os recursos e tornar a empresa mais eficiente”. Se o antigo diretor quis de início parecer simpático, esse foi pelo caminho oposto - a ver se vai se contradizer nessa primeira impressão, como o antigo; infelizmente, creio que será coerente.

Esqueci de comentar no início: uma das características do café na cafeteira é que muitos interrompiam seu trabalho para esperar o café ficar pronto, e conversavam enquanto isso - não raro muito tempo depois de já terem se servido -; enquanto a máquina automática fez com que quem a usava o fizesse no automático também: vai, clica no café, tira o copo com aquela gororoba preta e volta para sua baia.

Enquanto uma empresa de aplicativos consegue prender os funcionários nas suas cadeiras com robô que entrega o café na mesa, aqui a eficiência consiste em economizar em café ruim e dar desculpa para funcionários baterem papo sem culpa. Eu não reclamo, mas não pretendo deixar de beber o café do restaurante ao lado - Macedo diz que seguirá me acompanhando -, com cara feia do chefe e tudo o mais.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

renanrenan, o médico e o artista

Em outubro de 2011 pela primeira vez eu subia em um palco: era para apresentar uma palestra em um congresso de medicina sobre cuidados humanizados (eu fui falar sobre máscaras sociais, como filósofo, só para constar), em São Caetano do Sul [bit.ly/cG111011b]. 

Falar para mais de duzentas pessoas deu um nervoso, porém foi tranquilo. Complicado mesmo foi o depois: com minha enorme falta de jeito no trato social (então eu não tinha um diagnóstico de autismo, achava que era só fruto da minha timidez excessiva), me sentindo muito deslocado, esperava uma brecha para me despedir das organizadoras e organizadores e ir embora.

Nesse ínterim, se aproximou de mim um estudante recifense. Pediu o texto que eu havia apresentado, emendou uma conversa, foi me aproximando de outros alunos, e fui me sentindo acolhido - ao cabo, terminei dormindo no diretório acadêmico da faculdade, já que eu tinha compromisso em São Paulo no dia seguinte (na época eu morava em Campinas).

Treze anos depois, eu com meu mestrado concluído, ele médico (de saúde da família, paliativista e de saúde LGBT), mudamos de lado. Agora é ele no palco, eu na plateia. Contudo, diferente de mim, não é sua primeira vez e nem se mostra acanhado, pelo contrário: se expande junto com a banda que o acompanha, Os Amanticidas. É Renan, agora renanrenan, em show da turnê do lançamento do disco conjunto, Eu te conto tudo, no Sesc Vila Mariana.

Já havia escutado o disco, gostado muito, com destaque para as quatro primeiras músicas - “Bisha”, “Arrasta asa”, “O sonho”, “Limbo” -, uma sequência diversa e arrebatadora. Ao longo de dez faixas renanrenan e Os Amanticidas se mostram bastante versáteis, passando por vários estilos da música popular brasileira. 

Se o disco é bom, o show - apesar de não ter todos os instrumentos do estúdio - é ainda melhor! Presença de palco, simpatia da banda, e uma interpretação poderosa de renanrenan. Sem falar em um público animado - os ingressos se esgotaram em menos de quarenta minutos.

Enquanto esperava, depois do show, para dar um abraço em Renan, fiquei a me questionar o porquê de seu nome artístico. 

Um duplo de si, onde pode caber suas múltiplas e talentosas facetas? O inverso de si,  daquilo que se esperava dele em outros tempos, tempos de menino? Sua própria sombra trazida com o nome? Ou seu nome próprio trazido por o que muito tempo foi uma sombra? O médico e o monstro: ao mesmo tempo que tem a profissão de maior prestígio na nossa sociedade, acintosamente se afirma nas suas heterodoxias de gênero e sexualidade com leveza e alegria (neste nosso tempo de reacionarismo e fundamentalismo religioso isso é uma monstruosidade)?

Poderia ter perguntado ao próprio, mas preferi guardar para questioná-lo em outro momento, mais calmo, e fazer conjecturas até lá.


13 de dezembro de 2024

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A confraternização cheia de mistérios [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Então é dezembro, último mês para tentar que o ano tenha sido mais que trabalhar, fazer faxina e marmita aos finais de semana (e quando falo marmita, estou sendo literal, aquela com arroz, feijão e mistura), viajar nas férias (cuidando para não gastar demais) e se queixar da vida. Mas não desanimo, vale lembrar que o Paraná Clube, em 2020, perdia de dois a zero para o Bahia de Feira de Santana até os 46 do segundo tempo e conseguiu a virada - se o Paraná consegue isso, qualquer pessoa consegue dar uma reviravolta no ano em dezembro (pedir demissão seria um exemplo, ainda que não esteja entre minhas alternativas, graças ao senhor Boleto).

Fim de ano traz, além dessa sensação de desperdício, por não ter feito quase nada, a Simone, o Roberto Carlos e agora, segundo o Brotinho, a Mariah Carrey (já não bastasse o rélouim e a bléquifraidei) e todos aqueles eventos desnecessários (os melhores), quando não desesperantes: reunião de família (a coisa boa do bolsonarismo foi acabar com esse evento de irritação e hipocrisia, como se realmente nos quiséssemos bem, quando no fundo só queremos fofocar e falar mal da vida alheia, mesmo), amigo secreto (para gastar dinheiro e ganhar algo indesejado em troca) e confraternização de fim de ano na empresa (são cerca de 1700 horas anuais em convívio com pessoas que não faço questão, por que sofreria outras quatro ou até mais?). Também é momento de rever amigos que não vimos o ano todo, em bares lotados, tentando encaixá-los numa agenda caótica por conta desses mesmos encontros.

Enfim, quase me desviava do móbil desta crônica, que é a confraternização aqui da empresa. 

Fui a uma e me arrependi - não sei onde estava com a cabeça. Decidi que nunca mais. A deste ano, menos ainda, pois terá um elemento novo: cada um paga a sua parte - e o valor é bem mais caro que um PF no centro, e eu desconfio que a comida não seja muito melhor que um por quilo daqui que se pretenda chique, que comentei alhures. Então é isso: não bastasse todo o ano junto a essa gente, ainda tem que pagar para passar um tempo a mais - e depois do expediente! 

Desculpem-me, colegas, mas um panetone caro compensa mais que sua companhia. Apesar que mesmo que fosse de graça eu não iria: ficar em casa sem fazer nada é mais interessante - e não que eu tenha uma má relação com a parte boa da equipe, digo, com boa parte da equipe.


Eu já havia avisado que não iria e dava por encerrada essa história para mim, quando o nobre colega Macedo - que também não vai porém é mais bem relacionado - me contou que havia um elemento especial, que me fez lembrar de um meme que comenta que só é a favor da escala 6x1 quem tem amante no serviço. Pois bem, a inovação maior é que será proibido celulares: eles ficarão do lado de fora. Isso mesmo: confraternização da firma virou uma reunião secreta - talvez para substituir o amigo secreto? Fosse qualquer outra festa, quero dizer, com outras pessoas, esse elemento iria me aguçar o interesse: afinal, se não é para filmar, coisas interessantes devem acontecer. Entretanto, o que me fica é a desconfiança de que algum superior, cidadão de bem e defensor da família tradicional, já esteja no modo pegação (quem sabe sem o Doutor Sabujinho as mulheres tenham baixado a guarda) e não quer que sua mulher veja o batom na cueca (ou na calcinha) em algum grupo de whatsapp - ou no Insta.

É certo que pode não haver provas materiais, contudo Macedo recordou que não tem como deixar de convidar todo o setor, por razões óbvias de criar o maior climão, fora a acusação de assédio moral. Nisso, Metodista, a pessoa que mais sabe dos subterrâneos do setor, assim como da empresa, já confirmou presença - logo ela, que nunca vai a confraternizações da firma.

Parece que só proibir celular não vai ser suficiente para manter os segredos.


03 de dezembro de 2024



quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Um Esperando Godot revisitado para a periferia brasileira do século XXI

Acompanho o trabalho de Jhonny Salaberg desde a apresentação de “Buraquinhos ou o Vento é inimigo do Picumã”, no CCSP. Suas obras tem uma temática recorrente - pessoas negras e vivências periféricas, sendo ele próprio negro nascido em Guaianazes, zona Leste de São Paulo -, porém cada abordagem é muito diferente, na forma e no conteúdo: Salaberg, definitivamente, não se acomodou nem se contentou em reproduzir a fórmula que teve sucesso, e se mostra um dramaturgo versátil e sempre denso. 

Fui assistir ao seu mais recente trabalho, “Tá Pra Vencer”, que ficou em cartaz no Sesc Ipiranga, com direção de Naruna Costa e atuação de Ailton Barros, Bia Rezi, Filipe Celestino e Jennifer Souza. Nele, Salaberg, de alguma forma, faz uma releitura de "Esperando Godot", de Samuel Beckett, para o contexto de periferia de São Paulo no século XXI.


Três amigos organizam no quintal de sua casa uma festa surpresa para um quarto amigo e o esperam, enquanto fazem os últimos ajustes. Esse amigo por chegar teve uma ascensão social e parece desdenhar suas origens: fez faculdade, foi morar na região central, faz terapia, está com várias restrições alimentares - que são tratadas por frescuras -, e nem mesmo a mãe ele visita direito. A espera pelo amigo, ao invés de "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão de que a gente existe”, como em Beckett, é uma afirmação de existência, e o preparar a festa serve para relembrar que suas existências são mais que sobrevivência - ainda que em momentos breves. Ainda assim, é espera.

Entretanto, quando a campainha toca, quem chega não é o amigo aniversariante, e sim o entregador de aplicativo - que é reconhecido por ter estudado na mesma escola que os demais. É ele quem traz a mensagem, não ao anfitriões da festa, mas ao público: na descrição que fazem desse amigo, começamos a perceber que se trata de uma pessoa que, apesar de ter subido na escala social (não sabemos o quanto), o fez com um ritmo de trabalho doentio. Tão doentio quanto o do entregador - que se identifica com a descrição, mas é ignorado por ser um igual aos três amigos em cena - e nisso vemos que os personagens não avaliam com a mesma acuidade sua própria situação, como se para pobre trabalhar muito fosse obrigação e não conseguir ir além da sobrevivência, destino.

O entregador/mensageiro sai em busca de sinal para a maquininha de cartão, de pronto começa o segundo ato, alguns anos mais tarde, a mesma espera, as mesmas falas. Altera a entrega a ser feita, o amigo do trio a comentar do seu drama/desabafo laboral-existencial - o que trabalhou como motorista de Uber e fazia jornada até o limite que suportava, a mulher que queria ser útil e fracassa, a outra que aprendeu que devia fazer tudo sozinha e começa a não dar conta -, e a velocidade da cena. São quatro atos, cada vez mais acelerados - como as exigências atuais de produção, reprodução e consumo. Poderiam, quem sabe, alguma hora se queixar: "Estou cansado de respirar”, porém não há tempo para isso: mal há tempo para respirar, precisam seguir o fluxo para conseguir pagar os boletos, pôr comida no prato e seguir a vida - e de vez em quando se divertir.

O último drama laboral-existencial é do entregador/mensageiro. O que ele traz não é o aviso de que o quarto amigo deve vir, mas da situação de todos os cinco daquela cena - presentes e ausente. É quando finalmente o amigo ausente liga, mas diante do esgotamento dos demais, é o entregador quem atende e explica que entende sua ausência - afinal, também ele está a trabalhar no dia de seu aniversário, impossibilitado de comemorar com seus. Impossibilitado de comemorar, assim como de viver uma vida plena, por conta das exigências econômicas de sobrevivência. Como os demais presentes ali (na plateia também?).

Aqui chegamos ao título da peça. Até o primeiro desabafo - do ex-motorista de Uber, corroborado pelo entregador -, podemos interpretar que todos ali estão à espera do momento em que o trabalho árduo será recompensado, em que vencerão, finalmente - como o amigo teria vencido. É algo que imaginam estar sempre para acontecer, nas precariedades das relações trabalhistas por aplicativo, dos bicos ou freelas, das vendas porta a porta e no discurso do empreendedorismo (isso que a peça nem entra na questão dos jogos de azar pela internet). O mais “realista” nessa relação com o trabalho é o ex-uber, que acaba por voltar ao trabalho CLT, aceitando que é melhor saber o quanto vai ganhar, ainda que não muito, do que arriscar ganhar menos (ou mais) como empreendedor de aplicativo.

Um segundo significado de “Tá pra vencer”, entretanto, é que o que estamos vendo está próximo da data de validade. Aqueles personagens à beira da estafa - física, psicológica e emocional - estão muito próximos do vencimento, de serem vencidos pelas exigências inumanas de um sistema opressor no seu discurso de liberdade. Ou, numa leitura mais otimista, que nos lapsos de consciência que os quatro personagens mostram ao falar de seus dramas laborais-existenciais, o que pode estar próximo do vencimento seja esse sistema - até por uma questão de sobrevivência das pessoas que o fazem funcionar.

“Tá pra vencer”, como as demais peças de Saleberg, é feita de sutilezas e brutalidades ao mesmo tempo. Uma peça necessária para estes tempos - seja para aqueles que vivem na bolha classe média (frequentadora do Sesc), seja para pessoas periféricas que se vêem plenamente representados naquelas situações. E difícil é não sairmos todos com ao menos uma mesma certeza comum: como está, não dá para continuar.


20 de novembro de 2024

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Um bairro feito em coletividade

Este final de semana fiz um passeio pelas ruas do Bixiga, na região central da capital. Apresentado como afroturismo, ele é organizado pelo Coletivo Negros do Bixiga, idealizador também do projeto que resultou no documentário homônimo lançado este ano (@negrosdobixiga).

O roteiro não é curto, tampouco longo, porém exige tempo para a imersão pelo bairro proposta por Wellinton Souza, nosso guia e integrante do Coletivo, e poder perceber as sutilezas da relações que se tecem nesse território, um local de resistência em meio a disputas contra a população que o ocupa - em boa medida formada por trabalhadores e estratos mais desfavorecidos da sociedade - vários que moram nos cortiços ainda muito presentes no bairro.

Passando por lugares significativos, conhecidos ou nem tanto, como a Rua Rocha, o sítio arqueológico Saracura Vai-Vai, a Casa do Mestre Ananias, apresenta também alguns recantos absolutamente inesperados, como o Viveiro Comunitário do Bixiga Denuzia Pedreira Bastos, em um pequeno terreno. O roteiro fala também de personalidades negras do bairro (e algumas italianas), como o artista e idealizador do Museu Afro, Emanoel Araújo, os sambistas Geraldo Filme o Pato N’Água (morto pelo esquadrão da morte, em 1968), e outros, além de proporcionar conversas com pessoas que fazem o dia-a-dia do bairro - sem falar dos encontros fortuitos entre o Wellinton e outros moradores, mostrando na prática uma relação muito diferente da que encontro nos bairros de classe média onde residi e resido. Um roteiro que realmente vale a pena fazer!

O que talvez sintetize a atmosfera do bairro seja uma grafiti pelo qual passamos, e que não teve qualquer menção. Um grafiti comum, sem destaque, longe dos painéis com técnica de grafitti que tem ganhado o estatuto de arte e começam a colorir a cidade nas paredes dos prédios - depois de anos sendo reprimidas nos muros.

Imitando a lógica dos totens espalhados por todos os lados de “Eu amo o lugar” - ou o evento, o time, etc -, tal grafiti tinha uma pequena e significativa diferença: ao invés de “EU [coração] BIXIGA”, ele trazia a primeira pessoa do plural: “NÓS [corações] BIXIGA”. Contra a lógica do individualismo, o Bixiga enquanto resistência se afirma também como coletividade, no plural das pluralidades que o habitam - com as bençãos de Tia Eliza.



12 de novembro de 2024


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Desfazendo-me

Calendários de bolso de 1975 e 1996, uma nota fiscal de quando morei com minha mãe, após o falecimento de meu pai; programas de orquestra, revistas de teatro, quatro anos de minhas crônicas encadernadas; um recorte de jornal de 1972, outro da greve dos bancários de 1990, uma foto do Motorhead autografada, bilhete do meu irmão avisando que foi na casa de um amigo, declaração de imposto de renda de 1990 de meus pais, carteirinha da minha mãe da biblioteca pública de Pato Branco e a minha de meio passe em Ribeirão Preto, recorte de 1992 com dicas de investimento, cartões telefônicos, um cartão de visitas com a sutil indireta “Disfarce... e saia de fininho que você aqui não está agradando”, caderno da minha mãe de 1968, DVD sobre Jango, do filme Pachamama, do Erik Rocha, de Sonhos, do Kurosawa, do NME Aniversário (no qual achei um texto meu que não lembrava); muitos CDs de blues, CD da Swan, da Tresbella Big Doce Band, do curso de alemão que não fiz; planta da reforma da casa de Pato, feita em 2021; nota fiscal da compra da Biblioteca Científica Live, em 1971; revistas dos GPs de Fórmula 1 a que assisti, guias de viagens que nunca fiz, mapas turísticos de cidades que visitei, bilhetes de metrôs de Lisboa e Barcelona, a carta com meu rendimento no vestibular da Fuvest, quando fui aprovado em psicologia; a revista dos 500 GPs e um capa de filme fotográfico com propaganda da Fórmula 1, de 1988; livro dos recordes de 1996, partituras - algumas que acalentaram meus dias de fossa da adolescência, outras que nunca toquei -, um guia turístico de Curitiba, de 1991; “livros” que escrevi para a matéria de português quando tinha dez, onze anos; vinte anos de agendas, bottons da Del-O-Max e do Pumas, um mini transmissor FM, instruções para uma prova de datilografia, cadernos e cadernetas variados - escritos, desenhados e totalmente em branco -, livros, muitos livros (de etiqueta, de despertar interesse científico em crianças, da coleção Os Pensadores); um gibi do Cascão, alguns do Recruta Zero; o primeiro livro que eu lembro de ter querido comprar - “História dos povos indígenas - 500 anos de luta no Brasil -, cocar, arco, flechas e flauta peruana de enfeites; panfletos do show da Cássia Eller, Almanaque Abril de 1971 (com um marcador na págida do “Calendários passados e futuros”, cujo futuro termina em 1999), camisetas da época do ensino fundamental que foram promovidos a panos de tirar pó e hoje são fiapos. Me desfaço. Abro caixas aleatórias - não são os espaços reservados para lembranças - e delas saem memórias e mais memórias; minhas, dos meus pais, da burocracia, de consumo. Nesses pedaços de papel e quinquilharias, imagino o que meus pais não viveram, no que não pensavam para terem separado aquilo; lembro dos muitos que fui e de tudo o que fracassei - felizmente - para me tornar quem sou. Não são pedaços apenas do passado, mas do futuro do pretérito. Me perco em relembrar e imaginar possibilidades. “Eu sou a continuação de um sonho”, fala a atriz na peça Reset Brasil, a que fui assistir hoje. Sou a continuação dos sonhos de meus pais, meu avós, de meus sonhos de antigamente. Mas sou também os sonhos abandonados pelo caminho - até para dar espaço a novos sonhos. E sejam individuais, sejam coletivos, eu sigo sonhando - e vivendo. 


28 de outubro de 2024













quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Descapetização total instantânea [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Quando mudei para o apartamento onde atualmente resido, um dos meus maiores medos era que no terreno vazio ao lado fosse construída uma igreja evangélica. Meus avós, no interior, tiveram essa sorte, e aos finais de semana é aquela cantoria e gritaria de gente tentando acordar um Deus surdo e desdenhoso - pois pelo tanto que gritam, sinal que tudo o que têm recebido do ser supremo do bem é o desdém divino. E quando você acha que terminou, ainda tem mais de meia hora de conversação animada na rua, já perto da meia-noite.

Pois não construíram a temida igreja - o terreno foi ocupado por uma torre de trinta andares, nessa arquitetura da moda em SP, em que os apartamentos parecem galinheiros apertados. Menos mal, ainda que o novo edifício faça sombra no meu, e se um dos vizinhos for voyeur, deve haver fotos minhas desnudo circulando pela internet.

De volta ao meu edifício. Ano passado mudaram os moradores do apartamento acima do meu. Há pouco mais de um mês essa vizinha fez um aniversário evangélico, com cantorias desafinadas e toda uma comemoração murcha na hora dos parabéns. Até aí, ok, cada um tem sua fé, e aniversário deve-se mesmo comemorar, mesmo que de uma forma deprimente como essa - o vizinho anterior possuía filho ainda criança e fez festas de aniversário todo mês durante a pandemia. Impliquei, mas não reclamei.

Duro que depois dessa “festa” parece que acharam que o apartamento é apropriado para a realização de cultos e sessões de exorcismo. Uma vez por semana passou a ter cantorias incrivelmente desafinadas (ainda bem que Deus é surdo, ou já tinha mandado um meteorito no meu prédio), seguidas de uma verborragia gritada por longos minutos, talvez uma hora, numa chorosa língua inventada - que deve ser a tal língua dos anjos, os quais, deduzo, devem ser seres muito rudimentares para não conseguirem articular sequer sílabas simples. Claramente todo esse festival sonoro se dedicava não a louvar Deus, mas a atazanar o todo poderoso do mal, o Diabo, que diferentemente do todo poderoso do bem, está sempre acordado e à espreita, disposto a dar a mão a quem lhe pedir, e não só aos VIPs.

Como bom vizinho, tentei não implicar, apesar da irritação - afinal, também não sei se o vizinho de baixo não usa de muita tolerância para suportar meus barulhos, em especial de Calvin, meu gato-jamanta pulador.


Pois ontem, lá estava a vizinha no seu culto-exorcista semanal, com a devida cantoria desafinada, com o chororô dos anjos, tudo em volume muito alto, quando decidiram também pular, como se fossem crianças hiperativas num jardim da infância. Ou melhor, elefantes felizes num jardim zoológico. Foi demais. Reclamei para a síndica, que se prontificou a resolver o quiproquó no ato. 

Fiquei na porta a escutar (o prédio é antigo, as escadas não possuem portas). Escutei a campainha sendo tocada - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei o bater na porta - e dá-lhe cantoria, chororô e pulos. Escutei, então, murros na porta e o milagre se fez: repentinamente o silêncio. Evidentemente que o Diabo fugiu tão logo viu a síndica e tudo aquilo que meus vizinhos estavam fazendo se tornava desnecessário. Fui dormir tranquilo e com a sensação de missão cumprida. Como não sou egoísta, deixo aqui a dica às igrejas evangélicas e todos aqueles preocupados com o Diabo: para uma descapetização total e instantânea, sem dores, sem gritos, sem lamúrias, chamem o síndico!


24 de outubro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cena urbana

O sinal fecha. Olho à minha direita. Ao fundo, o brutalismo da estação Armênia interrompe qualquer horizonte possível. Já a praça ao lado parece um acampamento de guerra: é um acampamento dos desvalidos, com precárias barracas improvisadas. Pessoas que me aparentam sem horizontes nesta sociedade. Garoa, mas isso não espanta dos bancos os homens que ali passam o tempo (não vi mulheres). Sobre o que será que conversam? Matam o tempo, à espera que este os matem (a morte violenta seria a outra alternativa)? A praça parece uma área proibida a quem não é um miserável, não por imposição deles, mas por medo nosso. No ponto de ônibus da praça, sete pessoas se protegem da garoa. Um homem - um dos "moradores" desse lugar de passagem - se aproxima e tenta cumprimentar algumas dessas pessoas, sem muito sucesso. Passa, então, a dançar estilo o Michael Jackson e tenta novamente cumprimentar as pessoas. Três o fazem, os demais o ignoram ou se afastam. Reparo que o homem veste uma luva preta na mão direita, dessas que se usa em restaurante. Ele pula na frente do carro e começa a dançar para nós. Dura uns trinta segundos sua apresentação. Imagino que vá pedir uma moeda depois disso, mas ele simplesmente sai e vai ao encontro dos seus companheiros de abandono. O sinal abre e a cidade volta a passar indiferente pela janela do carro.



23 de outubro de 2024

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Calvin, meu gato [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Algo que sempre falei dos meus gatos é que eles são super carinhosos, em especial o Calvin - ainda que Haroldo não fique para trás. Goreti, amargo, discorda: diz que não são carinhosos, são carentes. Carinhosos ou carentes, estão sempre me pedindo carinho.

Um dos momentos que Calvin não perde é quando vou fazer café: é ele escutar o barulho da chaleira sendo aberta e não importa onde esteja, o que esteja fazendo, se encaminha para a cozinha, dá dois miados e se planta ao meu lado, querendo carinho - o que faço, é claro.

Ao menos assim eu imaginava. Se Goreti tentava - sem sucesso - desfazer minhas ilusões falando que eram carentes, Brotinho, semana passada resolveu dar cabo a essa minha história de gatos carinhosos, que adoram receber agrado quando vou fazer café.

Estava eu preparando um café para nosotros quando lá veio Calvin, com seu caminhar típico, e se postou diante de mim, se oferecendo para o agrado tradicional. Diante do meu enésimo comentário de como eles são carinhosos, especialmente ele na hora de preparar o café, Brotinho não se aguentou:

- Desculpa dizer isso, mas você já reparou na cara de enfado que ele faz toda vez que vem para a cozinha nessa hora?

- Cara de enfado?

- É, repara: ele não está nem um pouco feliz.

- É que eu ainda não fiz o agradinho de sempre nele, não é, Calvin?

- Não, ele não vem aqui por carinho...

- Então por o que ele viria?

- Repara na carinha dele: parece muito mais que ele está supervisionando você, cuidando pra você não fazer nada de errado.

De início não quis acreditar, mas comecei a reparar, e de fato, diferentemente das outras situações em que ele me busca por carinho, essa hora do café (e quando vou cozinhar também, ainda que cozinhe só de vez em quando) a cara dele realmente é diferente, parece haver aquele cansaço das obrigações fastidiosas. Mas não desisti do meu otimismo. Hoje contei o fato ao Goreti:

- Acredita que meu gato, de tão carinhoso, se dá ao trabalho de ir até a cozinha acompanhar eu fazendo café, não importa o que ele esteja fazendo?

- Sei como é. E isso não é carinho, é desconfiança, mesmo. No mínimo você já se queimou cozinhando e ele não bota fé que o dono não vá se machucar. Ele não confia muito em você, não.

Goreti é um cara amargo.


09 de outubro de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Os jogos de azar e a crise da sociedade do trabalho


Jornalistas e influenciadores sérios há muito têm alertado sobre as bets e jogos de azar - de Luis Nassif, do GGN, a Eduardo Moreira, do ICL -, a caminho de serem legalizadas no Brasil. Há três questionamentos principais: toda a avenida que essa atividade abre para a lavagem de dinheiro, o quanto afeta a economia real, ao retirar dinheiro de circulação para apostar nos jogos e os riscos à saúde pública, com o vício em jogos. Tudo isso com propaganda quase onipresente nos meios de comunicação e internet, seja publicidade direta, seja via patrocínio a equipes de futebol - no Brasil e no exterior.

Chama a atenção que a maioria dos apostadores seja das classes menos favorecidas [https://bit.ly/3N4XztU]: seriam os pobres mais vulneráveis ao vício?

É de se destacar que quem aposta em bets e jogo do tigrinho e afins não visa se tornar milionário, ou fazer um pé de meia - como no caso das loterias da Caixa -, mas tão somente complementar a renda do mês - daí, inclusive, muitos influenciadores venderem a aposta em bets como investimento.

O que isso nos mostra é que as pessoas das classes C, D e E antes de enriquecer, querem apenas sair da condição de sobreviventes. É a assunção, mesmo que inconsciente, de que o trabalho permite apenas tocar a vida no seu mínimo, sem permitir confortos ou planejar minimamente o futuro - até pela instabilidade de quem está empregado, para além dos baixos salários. Implícito também está que ninguém fica rico trabalhando - por isso a necessidade de se “investir” e a esperança de ganhar na loteria. 

Ainda assim, se insiste na ideia da necessidade de se trabalhar, de que “o trabalho dignifica o homem”, sendo poucos os casos em que o trabalho de fato dignifica - é lucro quando ele não danifica a pessoa (e falo não só por experiência pessoal). A manutenção desse discurso é ideológico, no sentido de negar a realidade vivida em prol de crenças repetidas diuturnamente pelas instâncias para-estatais - igreja, família, meios de comunicação de massa.

Sem dúvida, há o problema do vício em jogos - pelos dados apresentados, é de se imaginar que aflija pelo menos metade dos apostadores de bets -, e isso é motivo suficiente para proibir esse tipo de jogo - literalmente ao alcance da mão, a qualquer momento -, contudo há esse elemento implícito acerca o trabalho que precisa também ser trazido à tona: o quanto se recebe trabalhando, a função na sociedade dessas oito horas diárias de labuta desprendidas para os outros - algo que aflige também as classes mais altas, e que ajuda a formar esse caldo de descontentamento e tesão difusos que comentei alhures.

Trabalho sem sentido para conseguir apenas sobreviver em meio à sociedade da abundância: é também nisso que hoje os jogos de azar pela internet assentam suas bases.


27 de setembro de 2024

domingo, 22 de setembro de 2024

A onda de diagnóstico de autismo e nosso modo de produção

Conversava com uma amiga sobre a onda de diagnósticos de Transtorno de Espectro Autista que tem varrido seu entorno - e eu sou o mais recente a ser enquadrado nele, cuja suspeita surgiu enquanto estava de licença de saúde por burnout. Questionava se os diagnósticos seriam válidos mesmo, ou apenas atendiam a interesses da indústria farmacêutica e das esferas a quem é útil patologizar o quotidiano. 

Sem negar suas questões, mas ao mesmo tempo pressupondo que boa parte desses diagnósticos correspondam à realidade, há uma certa coerência se pensarmos em termos psicossociológicos.

A onda de diagnósticos de autismo lembra a de depressão (sei que são coisas diferentes, e autismo não pode ser enquadrado como doença), nos anos 1990, que foi sendo normalizada até hoje aceitarmos que a depressão na nossa sociedade é algo normal e quase inevitável. Lembra a onda de diagnóstico de TDAH, nos anos 2000, também normalizado até o ponto de hoje ser parte da paisagem - devidamente medicado, é claro.

Essas ondas de diagnósticos aparentam ser mais que um modismo, antes sintomas do sofrimento social que desponta em um certo momento - fim das utopias, invasão das telas no nosso quotidiano, gestão ultra-liberal do “sofrimento produtivo”. Quando um grande número de pessoas que estavam aptas a funcionar no sistema passam a sucumbir, é preciso encontrar um diagnóstico que individualize o problema e autorize dar a essas pessoas um desconto para seguirem sendo produtivas, mesmo que com uma eficiência um pouco menor, com pequenos percalços no caminho - uma forma de não desperdiçar tanto dinheiro investido em “capital humano” -, ao mesmo tempo que interdita a discussão social sobre a origem desses males. Em termos mais populares: antes da pessoa espanar diante das novas exigências, é melhor dar uma colher de chá - desde que junto ela carregue o estigma e não questione o modo de produção. Para a pessoa acaba sendo vantajoso também: uma forma de não ser excluída da sociabilidade geral, de se manter inserida na sociedade do espetáculo.

Ainda assim, restam as perguntas postas por minha amiga e algumas outras: era mesmo necessário patologizar (mais) essa diferença, que por muito tempo era simplesmente aceita como peculiaridades da pessoa, e em outros tempos pouco afetava seu dia a dia? Não seria menos custoso - em termos individuais e sociais - uma existência com menos pressão e mais aberta a devires não-normatizados? Quem lucra com essa inclusão-excludente do agora diferente e a patologização de comportamentos?

As atitudes frente a essas questões não se dão de forma individual: como pessoa, o que nos interessa, antes de tudo, é sobreviver e ter alguma qualidade de vida - é fácil fazer a crítica quando o sofrimento se abate sobre o outro. Entretanto, junto com o alívio que um diagnóstico pode trazer (alívio contraditório, é bom dizer, por conta do estigma), não podemos deixar de questionar essa sociedade que nos empurra para isso - a saúde mental não está desvinculada do nosso estilo de vida, ela é produzida pelo nosso modo de produção. Quantas pessoas, as ditas “normais”, estão hoje felizes e satisfeitas? Como dizia Marshall Sahlins, em Esperando Foucault, ainda: “um povo que concebe a vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser cronicamente infeliz”.


22 de setembro de 2024.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

A Legião dos Esmurradores de BÍblia do Centro e AdjacênciaS e as rinhas de pregadores [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Quem anda pelo centro de São Paulo já deve ter se deparado com algum pregador alucinado esmurrando a Bíblia como se fosse a origem de todas as suas frustrações existenciais, decepções com a vida e abdicação de desejos. Ao parar para ouvir, ou ouvir sem se deter, mesmo, dá para ver que fazem pregações moralistas, teoricamente defendendo o que estaria escrito no referido livro - talvez em algum evangelho oculto. 

De início (uma década atrás, pelo menos) eram dois ou três, que não pareciam ter conhecimento um do outro, apesar de todos socarem sem dó a Bíblia. Com o passar dos anos, além de se aprimorarem na arte de esmurrar o livro cristão, foram se unindo, crescendo, fazendo sucessores. Sucesso, não fazem, a não ser pelo freak show que oferecem aos transeuntes da região central. Hoje devem estar em sete, pelo menos - já dá para dizer que são uma legião. Daí que eu e Macedo os denominamos Legião de ESmurradores de BÍblias do Centro e AdjacênciaS (LEsBiCAs).

Tem o Atarrachadinho sem pescoço que só sabe falar que “dar o cu é pecado!”, “chupar rola é pecado!” “se esfregar no pinto de outro homem é pecado!”, e por aí vai. Tem o senhor do Radinho, que usa o livro sagrado como antigamente se usava radinho de pilha nos estádios de futebol, com a diferença que de tempo em tempo desce a Bíblia para esmurrá-la com a raiva de um pênalti perdido aos 45 do segundo tempo - coisa que se alguém fizesse com um radinho de antanho perderia o aparelho, por mais robusto que fosse. Outro ancião melhorou na técnica do esmurro, parece ter uma pedaleira dupla na mão de tanto que sua Bíblia reverbera. 

Tem também um que chamamos de Franguinho, pois esmurra sem critério e sem força sua Bíblia. Geralmente ele não está sozinho, está com dois ou três dos esmurradores, ao menos, assistindo. Por um tempo, estavam os outros seis lá, só o observando pregar, no alto da ladeira General Carneiro - como se fosse o alto do monte das oliveiras. Levamos um tempo para entender o que se passava ali. De início achávamos que era algo como uma defesa de tese - mas não fazia sentido tantas defesas da mesma pessoa. Nossa segunda alternativa foi que se tratava de treinamento, mas nunca vimos ninguém intervir, ninguém ensiná-lo como se esmurra de verdade uma Bíblia: eram sempre eles assistindo ao pobre coitado perdendo os pulmões e fazendo calo nas mãos sob o sol do meio dia. Terceira explicação, que acabou aceita: era teste de CNH de esmurrador de Bíblia, e ele não conseguia passar, por isso também não pregava sozinho, como já havíamos visto todos os demais fazerem. Tanto que foi depois que pararam de se reunir seguidamente ali que passamos a vê-lo esmurrando solitariamente a Bíblia pelo centro.

O trem fica interessante mesmo quando rola uma rinha de pregadores. Explico. Algum outro pregador das adjacências, provavelmente sem conseguir vencer a concorrência dos que aparentam ser mais sérios, resolve que a culpa dos seus problemas de baixo quórum é dos LEsBiCAs - apesar de eles não terem quórum algum -, ou então acham que discutir eles pode dar alguma visibilidade, quem sabe um verniz de pregador sério da Bíblia. 

Contudo, preciso admitir: não é fácil tirar os esmurradores do sério, ou melhor, do seu transe.

Já vimos um pregador que foi até o alto da General Carneiro questionar onde estavam os calos nos joelhos, e diante da sua exaltação, ser tirado por outras pessoas, sem fazer com que o Franguinho se alterasse. Esta semana presenciamos outra contenda teológica: a cada frase falada pelo atarrachadinho sem pescoço, a cada soco dado na Bíblia, o pregador desafiante o desafiava: prove, prove, prove, prove. E nada: o esmurrador seguia impassível em sua pregação, como se seguisse pregando para ninguém, como faz todos os dias.

Mas eles não têm sangue de barata, preciso admitir. Já presenciei um grupo de adolescentes perturbar o veterano Atarrachadinho sem pescoço. Não sei se falaram alguma coisa ou se apenas dois dos homens do grupo se beijaram na sua frente, sei que ele estava totalmente transtornado com aquele grupo, gritando a plenos pulmões que dar o cu era pecado e coisas nessa linha - daí que também o chamamos do Atarrachadinho do cu piscante. Contudo, se a discussão for pelo lado pugnoteológico, eles permanecem imperturbáveis, invencíveis.


10 de setembro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A tensão está no ar e nossa reação não tem sido apropriada

Ao caminhar pelo centro e pegar transporte público em São Paulo, dá para notar que os tempos não andam bons. No metrô, praticamente a cada duas semanas tenho pelo menos um atraso na minha viagem, por conta de usuário na via - e faço cerca de 15 viagens por semana. Pelo centro, presencio discussões e brigas toda semana, mais de uma, às vezes. Há uma tensão geral, uma pressão difusa, que não tem encontrado uma válvula de saída que não a violência bruta (contra si ou contra alguma outra pessoa, não raro alguma minoria). 


A violência desta semana começou cedo, já na segunda-feira, a caminho do trabalho. Na rua Direita, uma pessoa grita: “Se uma bicha estivesse te comendo você não estava me enchendo, sua maricona nojenta! Chama a política porque eu dei na tua cara, chama, seu homofóbico!”. Só então reparo que a pessoa que grita é uma transexual de poucas posses. O carro da polícia passa, o homem - também ele de poucas posses - não fala nada, e eu sigo meu caminho sem ver se a primeira pessoa tentou fazer valer seu direito - mas acredito que não: por ser trans e pobre, a PM não vai se incomodar com “apenas” um caso de transfobia na rua.

Isso me fez lembrar de uma das últimas postagens que vi no twitter, um fio com fascistas apanhando após agressões racistas.

Reconheço ter um certo regozijo em ver as imagens desse tipo de gente apanhando - ainda que eu sinta falta da força da lei aparecer logo em seguida para autuar o racista. Contudo, há um lado profundamente triste nessas cenas também: fico a imaginar quanto essas pessoas que reagem a (mais) essa agressão já não sofreram. Para chegar no nível de raiva que o fio apresentava, dificilmente vai ser uma provocação isolada que servirá como disparador: é uma vida toda de preconceito e racismo, descontado em um gesto, e que pouco servirá para evitar agressões futuras - mesmo para reparar alguma agressão passada.

Um dos fatores de crescimento da extrema-direita é justamente ser capaz de identificar essa raiva sob pressão e dar vazão a ela, ainda que da forma mais tosca, mais bruta, menos elaborada -, como violência pura e simples. As esquerdas seguem sofrendo em dialogar com afetos políticos dessa natureza, seguem atuando na base de racionalidades política (no sentido amplo de política) que remetem a Rawls, em que se pode tolerar os extremistas porque com o tempo eles “caem” para o centro; ou à Grécia antiga, identificando o bom, e belo, o justo e o verdadeiro - como se uma pessoa ser de extrema direita fosse um problema cognitivo ou de educação, como disse (por outros termos) Boulos no Flow, e não uma questão de posicionamento perante o mundo, muitas vezes muito bem informado -, bases que se mostram cada vez mais caducas nos tempos atuais. Não se trata de negar ou tentar esvaziar essa raiva, mas canalizá-la para mudanças sociais via processos não fascistas (que inclui a violência bruta e o rebaixamento do outro).

Ou as esquerdas aprendem - e logo - a analisar e se movimentar nestes tempos, ou fenômenos políticos como o capitão expulso do exército e o coach da montanha serão cada vez mais fortes.


02 de setembro de 2024

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Um trauma chamado restaurante por quilo do centro [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Faz um bom tempo comentei que costumo ter minhas três opções de almoço, ainda que o centro tenha centenas de restaurantes, os mais variados - ao menos aparentemente. De lá para cá, pouca coisa mudou: sigo frequentando duas das três casas de pasto referidas dois anos atrás, tendo substituído a terceira. Sou uma pessoa de hábitos. Vez ou outra cedo às pressões de Macedo, meu nobre colega e companheiro de almoços, e vamos a algum lugar diferente - ou mesmo ao terceiro restaurante de antanho, só para confirmar que segue salgado (não falo do preço, que nesse sentido se aplica só à sobremesa do local).

Nessas variações, acontece de irmos a algum restaurante por quilo do centro. E até hoje,  tem sido sempre uma decepção. Mais que isso, já se transformou num trauma. Um trauma reiterado a cada padaria que serve almoço, a cada portinha de sobrado com uma escada para um grande salão, a cada restaurante e lanchonete apertada. 

Existem basicamente três tipos de restaurantes por quilo no centro.

O primeiro são uns que tem pela cidade toda, a mesma apresentação visual, o mesmo preço, a mesma comida salgada, muda só o nome e o endereço.

O segundo são os baratos: tem um bifê (ou buffet, como preferem os chiques) com poucas opções, saladas desmilinguindo de tão cozidas, arroz, feijão, macarrão e a maior variedade é de frituras.

Por fim, há os por quilos caros e que parecem bons, alguns até tentam parecer chiques: os pratos (aqui me refiro ao utensílio) são enormes, para perdemos a noção do quanto estamos pegamos, bifê amplo e sortido, tanto nas saladas quanto nos pratos quentes, e churrasco (bregamente chamado de grill) também com muita variedade. Dentre esses, tem os que - além do trauma - me deixam puto da vida, porque claramente roubam no peso (a partir dos 400 gramas preciso empurrar a comida, mas nesses como 600 e não me pesa, e não, não é a comida que é leve). Não que os outros sejam honestos (e já vou explicar o porquê), mas esses tem uma desonestidade explícita e que poderia ser enquadrada por uma fiscalização.

Enfim.

Em um dia comum, num desses pseudo-chiques, me sirvo de sushi, ceviche, salada de broto de bambu, de cenoura, de tomate, de pepino e de agrião (pulo as conservas, também fartas), no bifê quente, pego paella, salmão ao molho de maracujá, arroz branco, bobó de camarão, fraldinha ao molho madeira, nhoque, tutu de feijão; na churrasqueira, picanha ao alho, fraldinha e frango. E aí vem o passe de mágica que só esses restaurantes conseguem: praticamente tudo tem o mesmo gosto! O agrião não arde, a cenoura parece um chuchu, o tomate parece a cenoura, o pepino o tomate, e o chuchu, esse eu não peguei para saber se tem gosto de alguma coisa outra. O sushi e o ceviche, por seu turno, se não são de chuchu, eu realmente não sei do que seriam. Nos pratos quentes, alguma diferença no molho de maracujá - ruim -, porque peixe, frango, frutos do mar, carne bovina, tudo tem o mesmo gosto, um indefinido tempero que vale para tudo. Paella, bobó de camarão e molho madeira são a mesma coisa - e ruim! Esses restaurantes parecem bandas de formatura, que tocam de tudo, mas sempre do mesmo jeito, de modo que só quando você escuta a letra (e entende o que estão cantando, porque isso também não é sempre) que descobre se estão tocando Beatles, Nirvana, Beyoncé, Banda Calypso, Leandro e Leonardo, Raça Negra, Titãs, Vivaldi, Shostakovich ou funk pancadão. Aí está a desonestidade do lugar: o vasto bifê não é nada mais que uma versão ampliada e repaginada dos por quilo baratos; se fôssemos dividir por gosto, teríamos umas três saladas, duas conservas e seis pratos quentes (contando o churrasco), no máximo, e raramente seriam bons.

Ainda assim, de vez em quando eu cedo à minha esperança de achar uma casa de pasto  por quilo realmente boa e honesta e às pressões do Macedo, e vou a um desses restaurantes. Sou uma pessoa de hábitos - e reclamar é um deles.


21 de agosto de 2024


PS: Lembrei apenas depois: os restaurantes que querem parecer chique ainda põe azeite de oliva de marcas boas para temperar a salada, mas quando você usa é capaz de sentir o sabor dos oliveirais do Mato Grosso...


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Um colega imperial [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]



Precisava de material de um outro setor e mandei um e-mail à pessoa responsável. Educadamente ela me respondeu que somente César Augusto estava autorizado a fazer tal pedido meu setor. Me veio o estranhamento: quem é César Augusto? É certo que não sou a pessoa mais sociável, mas não me lembrava de ninguém com esse nome. 

Dei uma passada de olhos pela sala. Seria um dos novos funcionários? Algum novo estagiário que eu não percebera? Algum colega que eu sempre esqueço o nome, por nos chamarmos pelo sobrenome (ainda que eu sempre saiba o nome de quem sei o sobrenome)? 

Não conseguindo lembrar de nenhum César Augusto, fui pela lógica: quem na sala parecia subir num pedestal quando era chamado? Pedestal não por metidez, mas pelo próprio nome, afinal, César Augusto é imponente demais para alguém com feições como a minha, por exemplo. Novamente, sem sucesso na minha segunda tentativa de adivinhar quem era o misterioso colega César Augusto. 

Envergonhado, pedi ajuda ao nobre colega Macedo. Ele ajudou, mas poderia ter sido mais direto, não ter respondido minha pergunta com outra pergunta (o Chaves já ensinava que só os idiotas fazem isso).

Macedo, sabe me dizer quem é o César Augusto?

Sabe aquele que senta na terceira baia?

O Nilo, claro que sei! Que tem ele? (só os idiotas respondem a uma pergunta com outra pergunta, eu sei).

Sabe o nome dele? Não digo o sobrenome.

Sei, sim. César.

Pois então, tem um Augusto entre o César e o Nilo. Na verdade um Augusto Trajano.

Olhei novamente para o Nilo. Uma boa pessoa, jeito de bonachão, baixinho, fala baixa também, tranquilo, almoçamos seguidamente eu ele e Macedo (havíamos almoçado juntos no dia anterior), parece o Júlio, do Cocoricó, não parece alguém com nome tão imperial, César Augusto Trajano Nilo da Silveira.

Acho que as pessoas deveriam poder mudar de nome quando adultas, para melhor se adequar ao seu estilo. Até isso acontecer, pedi para Macedo não comentar com Nilo minha gafe e torço para que ele não acompanhe meus textos.


16 de agosto de 2024


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Reformas das calçadas do centro sentidas no trabalho [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Há um meme na internet que põe três variáveis para os serviços, nos quais só se pode escolher dois: ser rápido, ser barato e ser bom. Se é rápido e barato, não é bom; se é rápido e bom, não é barato; se é barato e bom, não é rápido.

O meme é engraçado e quase realista, ainda que às vezes ele se equivoque: dá para algo ser lento, caro e ruim. Parece que as reformas da prefeitura nas calçadas do centro de São Paulo seguem essa conjunção de tudo do pior.

Ainda que, penso agora, a questão de rápido ou lento não seja exatamente um ponto: o importante é que as obras fiquem prontas na antessala da eleição, para o prefeito mostrar que fez algo, mesmo que tenha sido uma obra inútil e que serviu para fechar ainda mais lojas de um centro cujo comércio já estava devastado pela pandemia.

Mas os reflexos para os prédios da região também não foram menos desastrosos - ao menos no edifício onde trabalho. Comentei alhures da vez que a filha de uma funcionária meteu um “banheiro interditado” que obedecemos fielmente por uma semana, até descobrirmos que nunca esteve; também falei das marcas de animais na porta da cabine, provavelmente de algum mamífero que sobe pelo ralo ou retrete [https://bit.ly/cG230706]. Pois essas obras pelo centro fizeram relembrar dessas historietas, com agravantes.

Para além da barulheira que se estendia há mais de mês, com marretadas, britadeiras e máquinas cimenteiras disputando o ambiente sonoro com músicos, pregadores e esmurradores de bíblia, a coroação foi quando deram a obra em frente por encerrada.

Dois dias depois, um dos banheiros do andar foi interditado. Dia seguinte, o outro banheiro do andar e banheiros de outros andares também foram interditados. Ainda assim, recebemos notícia da chefia, dizendo que usássemos os banheiros dos andares que ainda não estavam entupidos (os mais altos), e seguíssemos normalmente com os trabalhos. Assim se tentou fazer, mas esse terceiro dia praticamente todos os banheiros do prédio foram sendo interditados, um depois do outro, com animais e excretas fugindo das retretes dos andares mais baixos. Para evitar que se tornassem chafarizes de merda, cortaram a água do edifício também. A contragosto das chefias, os funcionários foram mandados para casa no meio do expediente. No quarto dia, sexta-feira, fizemos todos teletrabalho, para desespero dos chefes, que assim podem comprovar que rendemos tanto em casa quanto de corpo presente.


Dado esse festival de interdições, investigação vai, investigação vem, e os banheiros seguiam entupidos, nada descia, pelo contrário, muita coisa subia. Foi no domingo que descobriram o que havia acontecido: na reforma das calçadas, haviam obstruído a saída de esgoto do prédio.

Conseguiram desobstruir a tempo para terça-feira voltarmos no meio do expediente. Ponto para a prefeitura, rápida nesse momento, deixando apenas como efeito colateral britadeiras destruindo o resto da calçada recém feita para adequá-la às saídas de esgoto do edifício.

Da nossa parte, lamentamos duas coisas: a velocidade com que resolveram esse problema  - sempre dizem que destruir é fácil e rápido -, e o fato de não haver reformas do tipo na frente da casa do chefe.


15 de agosto de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Sanspaieux, a professora com um sonho da casa própria em SP [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Vida de professor não é fácil. Brotinho tem uma amiga, a Sanspaieux, que é professora da rede pública há vários anos. Dava aula no estado, prestou concurso da prefeitura, prometendo a si própria que se passasse iria comprar um apartamento e sair do aluguel. 

Pois passou - e foi fazer as contas para a casa própria. Descobriu que com o novo emprego até conseguiria pagar as prestações, porém não conseguiria mobiliá-lo - e sabemos que nos apartamentos de hoje em dia, se não for móvel sob medida, você não cabe na casa, simples assim. Solução: manter os dois empregos por um ano. Como era pouco tempo, decidiu encarar essa aventura.

Pois surgiu um novo problema: uma escola na zona leste, a outra no extremo sul: não tinha como chegar a tempo no segundo emprego se não tivesse carro. Decidiu, então, comprar um carro. Comprou um celtinha usado, inspirado num deputado que - esperamos - será o novo prefeito de São Paulo. 

Claro, que isso não poderia acarretar um novo contratempo: para pagar o carro e mobiliar a casa, precisaria ficar dois anos - e não mais apenas um - com dois empregos. Quem aguenta um, aguenta dois, pensou, e seguiu firme na sua promessa de casa própria.

Como já teria o carro, resolveu comprar um apartamento em algum lugar bem localizado, na região central, perto das coisas que ela gosta de fazer, e não perto do emprego. 

Tudo ia bem para Sanspaieux - salvo sua saúde física e mental -, saindo de casa às seis e meia da manhã, voltando sete da noite, com reunião às sete e meia duas vezes por semana. Isso até seu celtinha deixá-la na mão. E não foi de uma vez. Num dia, furou o pneu. Foi atrás de borracheiro e chegou em casa quase dez da noite. Dois dias depois, o carro pifou de vez. Chamou o mecânico, que avisou que iria precisar de no mínimo sete dias úteis para consertar. Nos relata ela seu diálogo epifânico:

Mas, moço, eu preciso do carro para trabalhar!

Você trabalha com o que?

Sou professora.

Ah, achei que fosse Uber. Vou pôr o seu como semi-prioridade, mas antes de quatro dias não fica pronto.

Pelas suas contas, como ela mora longe dos dois trabalhos, até poderia ir de transporte público ao primeiro emprego, saindo uma hora antes, depois teria que pagar uber para o segundo emprego, e na volta, novamente transporte público, chegando cerca de nove da noite em casa. Inviável, não só pela questão do tempo, como pelo gasto com uber, que comeria o que ela ganharia no mesmo período com um dos empregos e mais um pouco. 

A solução foi dada pela conversa com o mecânico: alugar um carro e fazer Uber nos trajetos e mais uma horinha depois do expediente. Assim o fez. Problema: se com isso ela quase conseguiu fechar o aluguel do carro, para pagar o conserto do seu celtinha vai precisar fazer mais um tempo de Uber, para complementar renda - mesmo odiando dirigir, ainda mais em Éssepê, não sendo alguém que se anima muito em conversar com estranhos (ainda mais essa galera que fala merda pelos cotovelos, já xingaram professores umas três vezes, nos conta, quase em lágrimas), e estando cansada de tanto trabalhar. 

Ela tenta se conformar: é só por dois meses. Sanspaieux merecia ser entrevistada em qualquer um desses podcast de coach, mesmo sem ser uma, para ensinar resiliência e pensamento positivo - ou auto-engano, como preferir. Ao menos ela tem sua casa própria!


01 de agosto de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

São Luís: musical e dançante

O hostel em que nos hospedamos fica em um antigo casarão no centro histórico de São Luis. Nosso quarto dá de frente para a rua e as janelas não possuem vidros - logo, o isolamento acústico é precário. Como dito em crônica anterior, isso não foi exatamente um problema, visto que a região tem bem pouco movimento. Na terça, voltamos no início da noite e me irrito com a cantoria gospel a que somos submetidos. Cerca de quarenta minutos depois de iniciado ela se cessa, mas não tarda muito escutamos a cantoria de Nossa Senhora do Carmo - desconfio que fosse alguma procissão, já que é o dia da santa. Ela é mais breve, mas tão logo se encerra entra um batuque. Percebemos que está próximo e vamos em busca: trata-se, na verdade, de uma roda de tambor de crioula, que está acontecendo na Fonte do Ribeirão. Ficamos um tempo a assistir, e mais pessoas se achegam para o tambor - já tarde da noite o tambor terá terminado, mas um batuque ameno segue. 

Não parece que essa musicalidade toda seja uma excepcionalidade no dia a dia ludovicense, antes seu quotidiano.

No domingo da crônica anterior, ao sair para conhecer o Reviver havíamos trombado com um palco onde se apresentava o Boi da Madre Deus, o primeiro a ser registrado, mais de cem anos atrás, ainda pela manhã. À tarde, numa praça nos deparamos com um grupo dançando cacuriá - isso depois de passarmos por tambores sendo aquecidos numa fogueira para o tambor de crioula a que iríamos, sem querer também, assistir a seguir. No mercado das Tulhas, onde degustamos várias cachaças de graça - deu a impressão que o dono tinha a loja com o intuito de bater papo, não de vender -, uma roda de samba; na escadaria que paramos para tomar sorvete, um DJ tocava reggae - e sequer era a escadaria do reggae, que evitamos por estar apinhada de gente, e acredito que a minoria fosse turista - e fora do Reviver nos deparamos com outra roda de samba.

A primeira impressão, do sábado à noite, vai se desfazendo rapidamente - e eu chego a ter vergonha de ter tido conclusões tão precipitadas: São Luís se mostra uma cidade viva e pulsante, mais que isso, musical e dançante, que sabe conciliar seu dia a dia com o turismo, sem se render a este.



PS: e olha que não estávamos junto com o casal de amigas com quem viajamos quando elas fora até a periferia da cidade, conhecer a casa de uma das lendas do reggae local - a história que elas contaram vale por duas crônicas!



19 de julho de 2024.


terça-feira, 16 de julho de 2024

Alcântara, suas ruínas e suas persistências

 


No Maranhão é um sol para cada um: assim me alertava Lia antes da viagem - ela que morou em São Luís na infância. Achei exagero dela - até chegar a Alcântara. Desembarcamos meio-dia, ainda um pouco grogues do dramin (para não enjoar na lancha), e nos deparamos com um mormaço e um sol que me fez, finalmente, entender a expressão do início desta crônica.

Nos arrastamos a Ladeira do Jacaré acima, suando feito chafariz, em ruas de pedras irregulares, que se estendiam pelas calçadas e, em alguns pontos, até as paredes das casas, como se rua e casa fosse uma coisa só - e talvez aqui ainda sejam.

Pela cidade, em especial na rua Grande, pessoas sentadas em cadeiras na rua, vendo o pequeno movimento - no caso, basicamente de turistas que fazem o bate e volta de São Luís. Quer dizer, era isso ou então uma enorme fila do Banco do Brasil. O comércio fechado - inclusive os restaurantes. Na pousada em que ficamos, perguntamos se serviam almoço, e junto com a resposta afirmativa veio a pergunta: o que querem comer?, como se fossem óbvias as opções. As aproximações para vender passeios guiados ou o passeio para ver a revoada das guarás foram feitas na rua, não raro em motos - na Colômbia tive abordagem parecida oferecendo drogas, e em São Paulo nesse tipo de situação é comum oferecerem integridade física em uma troca compulsória pelo celular. Alcântara tem seus pontos turísticos, mas falta um pouco de tato com o turista - e isto não é uma crítica, apenas uma constatação.

As ruínas são o grande ponto turístico para quem passa rapidamente pela cidade - há também museus e não sei se alguma das comunidades quilombolas possui estrutura para receber turistas. Havíamos lido que as ruínas eram obras inconclusas, e ficamos eu e Lia discutindo poeticamente o que seria isso: ruínas do que não foi, restos do futuro do pretérito. Na verdade, há dois palacetes nessa condição - que disputavam quem hospedaria o imperador na sua visita à cidade (na época que o Brasil era um império, só para ressaltar), visita essa nunca acontecida -; os demais palacetes, a igreja na praça principal, o convento, isso tudo são obras do tempo reafirmando sua superioridade sobre a obra humana. O pelourinho - um dos poucos que restaram no Brasil - está defronte o prédio atual da prefeitura, antiga câmara municipal e presídio de um lado, e defronte a ruína da igreja do outro, e só resistiu porque foi arrancado com o fim da escravidão e jogado em algum canto, sendo reencontrado décadas depois e posto no lugar original: aqui, o tempo ironiza sua capacidade de permanência, a despeito do desejo humano de esquecimento.

Já a revoadas das guarás, motivo que nos motivou a dormir em Alcântara, o calor nos venceu e preferimos nos enfurnar na pousada o resto da tarde, até para ter um primeiro descanso em uma semana de viagem.

À noite - quando o calor arrefece - é que a cidade ganha mais vida. Ou então tivemos sorte. Saímos para tomar a fresca - como meus pais faziam em Pato Branco - e defronte a igreja do Carmo, um grupo de dança portuguesa - Flor de Portugal - se apresentava para um considerável público, levando em conta que a área urbana deve ter cerca de dois mil habitantes. Ironia: dança portuguesa, dançada por negros, para negros, na cidade com o maior número de comunidades quilombolas do Brasil - e que seguem na luta, diga-se de passagem e não sem propósito. Depois da apresentação, crianças brincavam pelas ruínas e um pouco mais afastados os namorinhos de adolescência tinha vez nos becos mal iluminados.


Na manhã seguinte, a cidade estava mais movimentada, mas nas lojas nos avisaram: do meio-dia às três estariam fechadas. O grupo que vimos defronte o Banco do Brasil no dia anterior estava agora com suas cadeiras do outro lado da rua, aproveitando a sombra - a tarde trocariam novamente de lado, sempre em busca da sombra e do movimento na rua. Visitamos os quatro museus da cidade, e fomos em busca de um lugar para comer - tarefa difícil, pois os locais que oferecem almoço é preciso reservar com antecedência, para dar tempo de comprar os ingredientes. Por sorte, encontramos um simpático restaurante que funciona como estamos acostumados - de entrar e pedir na hora -, e pudemos, de quebra, provar o licor de jenipapo típico da cidade, distribuído na Festa do Divino (quarenta dias depois da páscoa).

Apesar de pequena e de termos percorrido quase todas as ruas da cidade, saímos de Alcântara com a sensação de que ela ainda escondia muitas coisas entre ruínas e memórias - talvez seja isso o que desponte na Festa do Divino.





16 de julho de 2024