quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Há dois anos, eu preparava minha nova identidade

Numa conversa, em sua última semana de vida, estávamos minha mãe, eu e meu irmão em sua cama. Ela dizia que partia tranquila, ia feliz: tinha tido bons pais, um bom marido, bons filhos - uma boa vida, em suma. Ela estava sendo sincera, ainda que eu desconfie que a depressão - escancarada de vez durante a pandemia -, tivesse feito com que desejasse encerrar seu ciclo prematuramente: ela tinha 69 anos e não aparentava a idade, seja pela aparência, seja disposição física, seja pela mente aberta (meu pai, que partira seis anos antes, aos 61, também guardava essas características). Lembro de uma vez, antes da pandemia, quando contou da conversa com a vizinha, vinte anos mais nova, que dizia que não entendia a nova geração, pois era “de um outro tempo”, ao que minha mãe respondeu: “se você está viva, seu tempo é este também”. Isso não é pouco para uma senhora que sempre viveu no interior, longe de qualquer grande centro - médio, que seja -, numa cidade provinciana e super conservadora (61% de votos para Bolsonaro em 2022).

Como disse, acreditei que fosse sincera quando disse que partia feliz, mas não conseguia entender. Sinto que começo a apreender outras camadas do que ela dizia - obras do Tempo. 

Ano passado, a cada dia de janeiro e fevereiro, percorri em lembranças seu último mês, o que havíamos feito na mesma data do ano anterior, em especial na última semana, quando era evidente que o fim se aproximava a uma velocidade estonteante, e incapaz de ser revertido, nem mesmo retardado (e nem fazia sentido retardá-lo, pelo contrário) - tudo isso em meio a um calor mortífico que assolava a Pato Branco de tanto agrotóxico no ar (teve dia de 38ºC, 15% de umidade relativa do ar e baixa pressão atmosférica).

Este ano, não. Vem lembranças dos últimos momentos, mas com outro tom - uma alegria apesar da dor da ausência, e mesmo algumas lágrimas. Recordo que há exatos dois anos, 7 de fevereiro, eu fazia minha nova identidade, depois de mais de vinte anos - a anterior era de agosto de 1999, eu a fizera para facilitar minha vida no vestibular, já que era difícil imitar minha assinatura de 1989, com sete anos. 

Em 2000 eu começaria uma vida nova, longe quase mil quilômetros de casa e de meus pais - ainda que tenhamos mantido sempre a proximidade, por telefone, por visitas a cada dois meses, pelo menos, pelo carinho e consideração, sempre presentes. 

Em 2021, nessa mesma semana de minha nova identidade, eu começaria uma nova vida - e a distância intransponível para meus pais eu agora precisaria aprender a encurtar com lembranças e afetos. Como as que me vêm agora, gostosas, acalentadores, quase um abraço que o passado me dá - que eles me dão desde um outro tempo -, ou como quando conto dos detalhes dos móveis que agora vivem comigo, trazidos de Pato, aos amigos e, em especial, à Lia, que me ouvem com paciência e carinho.

Apesar de meu pai ter tentado se segurar mais à vida, na hora que ficou evidente que o fim estava próximo, ele também soube se despedir com serenidade e alegria. Ambos, conscientemente, foram impávidos, apaixonadamente e tranquilos diante do destino humano que os chamava para seu último ato. E eu, ao que parece, só agora começo a vislumbrar o óbvio - que nunca esteve realmente oculto.


07 de fevereiro 2024


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