Prestes a completar um ano
morando em São Paulo, descubro que há uma feira a três quadras da
minha casa, aos domingos. Serviu como consolo da minha ida ao
Carrefour, onde esperava preços menos abusivos que as antigas lojas
do seu Abílio, o Pão de Açúcar e o Extra. Que nada! Os preços se
equivalem. E como prêmio extra, pretendia comprar cerveja, mas me
senti intimidado com a bela promoter da marca que geralmente
compro. Mais barato mesmo parece ser na outra rede do grupo
Carrefour, o Dia %, com um desconto em torno de cem por cento: vinte
por cento nos preços, oitenta por cento na qualidade. Em um ano
morando aqui ainda não consegui achar um lugar para comprar
horti-fruti bom e barato: o Mercado Municipal tem preços do lugar de
gente feliz, e a feira recém-descoberta pareceu ter bons produtos,
mas não permite grandes economias.
À noite, cansado de tanto me
cobrar que eu preciso estudar (até cheguei a estudar um pouco), e
vendo que minhas reservas de psicotrópicos estavam no limite, saio
dar um passeio pela República e Santa Ifigênia, comprar erva e
comer um lanche. Não tinha grandes esperanças de que o restaurante
árabe na avenida Rio Branco estivesse aberto em um domingo à noite.
Arrisquei mesmo assim. Ao passar pela rua do Boticário e sua penca
de nóias, aquele lembrete interno: estou entrando em região
perigosa. Na Rio Branco, bares com hispanohablantes, puteiros
decadentes, lan-houses. Um homem – creio que um nóia – fala
qualquer coisa atrás de mim, tenho a impressão que é comigo, mas
não me viro. O restaurante está fechado, sem outra alternativa,
retorno. Nisso cruzo com quatro garotinhas de uns treze, quatorze
anos, talvez voltando do cinema, conversando animadas como
pré-adolescentes da sua idade fariam num shopping. Me pergunto se a
região é mesmo tão perigosa – proibida para menores –, ou se
eu quem me deixo influenciar por todo o discurso preconceituoso com a
área: cracolândia, nóia, imigrantes andinos, caribenhos,
africanos, moradores de rua, ocupações, violência violência
violência. Talvez a maior violência esteja justo nesse discurso
contra a região, que não deve deixar de reverberar em seus
habitantes. Mais amor, por favor!, como diz o lambe-lambe espalhado
pela cidade.
Compro as ervas que me propus: um quilo de ilex paraguariensis nacional, meio de argentina. Ao menos erva-mate eu descobri cedo onde achar (cafeína é psicotrópico, aos desavisados). Páro no Estadão, comer um xis, esse criador de obesidade, ao qual pareço imune. Subo pela Augusta. O Inferno está fechado, de luto pela tragédia de Santa Maria; o Studio SP manteve sua programação. Lembro dos comentários de fanáticos religiosos na internet, comemorando as mortes. Mais amor, por favor! Na esquina com a Antônia de Queiroz, o garçom e um cliente conversam: é uma vinte dois de cano curto. Mais amor, por favor!
Mal chego em casa, ainda me preparava para uma crônica sobre o nada acontecido nesse passeio pela cidade, e uma amiga que não vejo há meses me liga chamando para encontrá-la com o namorado, na Augusta. Lá vou eu de novo – não são nem onze da noite, e não imaginava que, aí sim, teria material para uma crônica.
Compro as ervas que me propus: um quilo de ilex paraguariensis nacional, meio de argentina. Ao menos erva-mate eu descobri cedo onde achar (cafeína é psicotrópico, aos desavisados). Páro no Estadão, comer um xis, esse criador de obesidade, ao qual pareço imune. Subo pela Augusta. O Inferno está fechado, de luto pela tragédia de Santa Maria; o Studio SP manteve sua programação. Lembro dos comentários de fanáticos religiosos na internet, comemorando as mortes. Mais amor, por favor! Na esquina com a Antônia de Queiroz, o garçom e um cliente conversam: é uma vinte dois de cano curto. Mais amor, por favor!
Mal chego em casa, ainda me preparava para uma crônica sobre o nada acontecido nesse passeio pela cidade, e uma amiga que não vejo há meses me liga chamando para encontrá-la com o namorado, na Augusta. Lá vou eu de novo – não são nem onze da noite, e não imaginava que, aí sim, teria material para uma crônica.
Estamos num bar na esquina com a Antônio Carlos. Pedintes páram para pedir esmola – devo estar com um aspecto realmente simpático, porque sempre se direcionam a mim. Foi mal, hoje não rola. Certo instante começa toda uma movimentação, as pessoas da mesa ao lado se levantam rápido, o garçom surge para ajudar, e quando consigo perceber o que está acontecendo já há cinco homens segurando um carro que, sem freio e sem motorista, com o alarme disparado, foi descendo calmamente a rua. Ficam um tempo ali, segurando e pensando no que fazer. O alarme parou de tocar mas o motorista não apareceu. Um deles faz um calço com uma caixa de papelão. Funcionou. Nos Estados Unidos a gente olharia, ficaria dando risada, ninguém ia se prontificar a ajudar alguém que sequer está presente, conta meu amigo. O brasileiro é cordial, principalmente com suas vacas sagradas – mesmo que não sejam os donos. Passa um pedinte balançando moedinhas num pote. Hoje não rola, desculpa. Pára o vendedor de rosas, sempre muito bom de lábia. A mim, nunca me convenceu, mas pela primeira vez sai da mesa em que estou sem conseguir dinheiro ou uma marmitex. Conversas sobre mestrados que não terminam nunca, doenças e movimentos negros, gays, feministas, sindicais. O garçom trás a conta: pela lei do psiu, do silêncio, da mordaça, sei lá, precisam fechar o bar, recém passou da meia-noite. Outros pedintes pedem um minuto da nossa atenção. Não dá pra tomar uma saideira? Desculpa, não. Passa novamente o pedinte das moedinhas no pote. Hoje não rola.
Descemos a Augusta, em busca de
outro bar. Paramos em um com mesas na rua: não, não estamos
fechando. Um rapaz loiro, de óculos, magricelo, meio abobado e bem
chapado pára em nossa mesa – chamemo-lo de mala, uma definição
assaz apropriada. What's up? Ficamos os três olhando para ele. Minha
amiga perplexa – São Paulo, de um modo geral, ainda a perplexifica
–, meu amigo com cara entre a de pouco amigos e a de que bosta é
essa?, e eu sei lá, creio que na minha natural cara de paisagem.
Gimme five, e estica a mão. Meu amigo o cumprimenta e ele sobe um
pouco, sem abandonar a área do bar. Não é americano: tem sotaque,
comenta meu amigo. Na mesa ao lado se sentam dois rapazes, um estilo
hardrock, outro de bigodinho. Passa o pedinte balançando o
pote de moedas. Hoje não. O mala volta. Hey dude! Diante da nossa
reação – ou falta de –, vai para a mesa de baixo. Não tarda
muito, começa a briga: porra, você me queimou!, reclama o mala. Um
copo é quebrado, e o rapaz do bigodinho o empurra desfere um chute
quando já está caído. Mais amor, por favor!, e eu a segurar o
brigão. O garçom chega: o que você está agitando? Ele me queimou
com o cigarro! Você quem veio aqui encher o saco. O mala sobe até a
porta do bar. Me vê mais uma cerveja. Não tem mais cerveja para
você. O mala desce, pedindo pra que alguém compre cerveja pra ele.
Pára na mesa ao lado – do rapaz do bigodinho e do hardrock.
Dá uma nota – de cinqüenta ou vinte, não vi direito – ao
hardrock: can you ask a beer
for me? Peço. Se senta com os dois. O do bigodinho começa a
chamá-lo de gay, pouco depois o hardrock se empolga também
em ofendê-lo. O mala segue abobalhado. A conversa está baixando o
nível, comenta minha amiga. E estragando nosso fim de noite, tenho
vontade de completar. Passa uma vez mais o pedinte do pote de
moedinhas. Não. O do bigodinho se levanta para nova rodada de
agressão, mas na mesma hora pára um pedinte. Fica um clima
estranho. I don't have money. Não estou entendendo, tem um trocado,
só para eu completar... O mala o abraça: you're my fucking friend,
but won't give you my money. O pedinte resolve passar logo, nem pára
na nossa mesa. Os ânimos se arrefecem um pouco, sentam-se. As
“ofensas” ao mala prosseguem. Até o bigodinho se levantar
novamente e começar a esmurrá-lo: pára de encher, seu filho duma
puta. Cabe a mim novamente, com todo meu porte, apartar o brigão –
minha vontade era esmurrá-lo, mas não comecemos uma briga
generalizada, mais amor, por favor! O mala vai para o meio da rua,
quase se mete na frente do carro, sai correndo ao seu lado, tentando
se pendurar na porta, desiste uns vinte metros acima. Volta. Se
chegar vai ter garrafada, avisa o muy macho do bigodinho –
contra um magricela e tendo um amigo na retaguarda é fácil ser
valentão. Calma, tento conter o rapaz. Só quero meus óculos, pede
o mala. Minha amiga ajuda a encontrá-lo, e pede pra ele sair. Ele
ainda pede desculpa por qualquer coisa ao do bigodinho. Na esquina,
vemos ele se confraternizando com um casal – eis um mala solitário,
carente e chapado numa noite de domingo. Ao lado, os dois amigos
trocam impressões. Porra, achei que fosse gringo. Eu também, eu
gosto de conversar com gringo – comenta o do bigodinho. Me pergunto
se o estopim para sua agressão não estaria na acusação de gay que
fizeram ao mala – ou se seria apenas inabilidade para lidar com o
Outro, saber sensatamente cortar papo com os chatos, ao invés de
golpeá-los (para não deixar mal-entendidos: definitivamente, não
foi o caso de uma agressão motivada por questão de opção sexual).
Olha, o cara esqueceu um pino! Comenta o hardrock. Prepara
duas carreiras, cada um cheira uma. Você devia conversar com o
Ronaldo, virar segurança na boate dele, em Curitiba. Nós achamos
que está de bom tamanho para a noite. Pagamos a conta e eu volto sob
acusação de que busco – e se não busco, atraio – esse tipo de
coisas para depois escrever crônicas. No caminho passo pelo pedinte
do pote de moedinhas – balanço negativamente a cabeça.
São Paulo, 28 de janeiro de
2013.
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