“I'm
only happy when it rains
I
feel good when things are going wrong”
Garbage
Duas
coisas que sempre me causam admiração em um certo pensamento da
esquerda acadêmica brasileira: sua lógica binária e a capacidade
preditiva da sua razão. Tais pensadores são capazes de dizer com
uma certeza embasbacante se algo é bom ou ruim, se vai dar certo ou
não, se é de esquerda ou não, antes mesmo de acontecer – não
importa o que. Se não usam métodos econométricos, é por mera
falta de familiaridade com eles. É certo que eles têm sido um pouco
mais nuançados, talvez fruto da insistência nas leituras de Marx e
marxistas, e até admitem que pode haver algo além de esquerda e
direita: uma pretensa legião da boa vontade de aspirações
esquerdistas, obnubilada pela reificação do capital e acometida do
mal da falsa consciência.
Comento
aqui o texto do pesquisador do LATESFIP-USP
(Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da
Universidade de São Paulo, USP) e membro do Coletivo Zagaia,
Silvio Carneiro, sobre o Festival BaixoCentro [j.mp/fBCz12].
O texto é um belo exemplo do cacoete dessa esquerda parasita de
bancos acadêmicos, precária de pensamento – fruto, em boa medida,
da ausência de interlocutores minimamente dignos na direita –, que
vocifera contra o capital (e contra o pai), mas no fundo está
satisfeita com sua situação, a ponto de não coadunar com mudanças
parciais, em nome da pureza revolucionária: só aceitam alteração
no seu status
quo
quando
a revolução chegar – muito cômodo para quem come e bebe bem.
Sustentado
por seus anos de estudo e pesquisa, Carneiro (será que devo chamá-lo
de doutor Carneiro?) desfila toda sua erudição
livresco-revolucionária não apenas para criticar o Festival
BaixoCentro – que merece, sim, muitas e pesadas críticas –, mas
para desqualificá-lo e desmerecer aqueles que se engajam na sua
organização.
Ele
começa sua crítica ao festival recorrendo ao conceito de
fetichismo: o Festival BaixoCentro, no texto de convocatória de
Gabriela Leite, se apresentaria como um espaço livre de relações
fetichizadas. Não sei se é exatamente isso que ela quis dizer, mas
com um pouco de boa vontade e contorcionismo intelectual, conseguimos
acompanhar os malabarismos retóricos de Carneiro para encaixar o
mundo na “sua” teoria.
O
ponto que deixaria descarado o fetichismo da mercadoria no evento
seria o uso de dinheiro para financiá-lo – o mecanismo do
crowdfunding seria
apenas um novo disfarce para “toda merda da mercadoria”. Pode até
ser, realmente o Festival BaixoCentro não me pareceu em nenhum lugar
ter como objetivo ao término do evento o fim da mercadoria.
Entretanto, o destaque para o financiamento individual, sem apoio de
ONGs ou empresas ou leis de incentivo ou reservas técnicas, talvez
seja para deixar claro que não há um direcionamento externo, um
balizador explícito de até onde podem ir as atividades e as
críticas do evento. A principal fonte de restrição seria a
“consciência reificada” de seus participantes, ignorantes que
não conhecem a verdade, pois não decoraram Marx, Gramsci, Lênin,
Lukács, Debord, Mumford, Castells, Jacobs; para quem adorno é
aquilo com que se enfeita o corpo (como os índios fazem), e não a
prateleira (como fazem os intelectuais). Não creio que seja
má-vontade dessas pessoas, antes falta dessa predisposição para
passar horas em leituras e seminários enfadonhos e estéreis. Será
que não estariam dispostos a conversar? (Conversar! não ter uma
aula ou palestra). Carneiro não sugere nada no lugar do crowdfunding
para levantar o
dinheiro necessário. Saques e expropriações forçadas da
propriedade capitalista? Assaltos a bancos? Bolsa Fapesp e reserva
técnica? (Mas quantos atenderiam as exigências tecnocráticas da
fundação?) Salários pagos pelo Estado (porque, afinal, capitalismo
de Estado não segue a lógica do capital)? Ou será que ele crê que
o amor pela revolução já é suficiente para realizar um festival?
Se é assim, por que o Zagaia nunca fez nada parecido? Samba em
barzinho na Vila Madalena parece estar um tanto aquém do Festival
BaixoCentro.
A segunda
parte da crítica é à falta de objetivos claros e específicos do
Festival BaixoCentro, sua proposta aberta e permissiva. O Festival,
pelo que entendi (não sou nem conheço ninguém da organização,
acompanho das redes sociais, tão-somente), se propõe a ser um
espaço de encontro, diálogo e trocas; e não um serviço de
alistamento de revolucionários bovinos a serviço de uma vanguarda
esclarecida (afinal, são da USP), e isso parece inadmissível para
nosso revolucionário de gabinete: tanto esforço para nada?
(Lembre-se, o pensamento binário). Uma ocupação colonialista que
não é para os propósitos da revolução (porque aí colonização
vira libertação). Ele chega até a fazer uma extemporânea e
descabida referência ao MST.
Discordo
dos motivos, mas concordo com a crítica de Carneiro sobre a visão
dos organizadores sobre o local, no seu quotidiano. A impressão que
se tem é que eles só conhecem o baixo centro das notícias da
imprensa: têm uma visão preconceituosa, abstrata. Parece que falta
percorrerem, em diversos horários do dia e da noite, as ruas da
região. Para muita gente, o baixo centro não é um local de
passagem; o baixo centro não é só concreto e asfalto: é uma
região rica. Se não rica de dinheiro, rica de tipos, de culturas,
de vivências, de “mundão”. E essa riqueza se dá justo pela
diversidade das pessoas, de classes, de etnias, de renda que
freqüentam o lugar – é uma região bem mais rica que o conjunto
de baladinhas assépticas da Vila Madalena, em que se depara com um
público uniforme. Aumentar ainda mais a diversidade do centro
deveria ser objetivo de qualquer pensador de esquerda, libertário ou
democrático, apenas. Se os organizadores ainda não se deram conta
disso, nada faz crer que estejam fechados a esse tipo de crítica, de
diálogo. Então por que não chamá-los para discutir juntos a
região, enquanto flanam pelas “feiras” da avenida São João,
pelos nóias da rua do Boticário, pelos inferninhos da rua Aurora,
pelos flertes gays da avenida Dr. Vieira de Carvalho, pelas travestis
da rua Rego Freitas, pela babel da avenida Rio Branco? Por que essa
região deveria seguir interdita para os manos do Grajaú, os
playboys de Tatuapé, os alternativos da Augusta, os intelectuais da
Vila Madalena, os engravatados que trabalham no local durante o dia?
Chamar
para o diálogo? O texto de Carneiro – e todo o histórico das
nossas elites intelectuais – deixa em dúvida se sabe fazer isso:
dialogar não é pegar pelo braço e falar: é assim que se faz, da
minha forma é a certa. É fazer críticas, observações, propostas
e aceitar que o outro, mesmo sem ser doutor, pesquisador, mestre,
bacharel, possa ser sujeito dotado de vontade e discernimento para
aceitar ou recusar o que fala alguém cheio de títulos – e mais, é
ouvir esse outro “ignorante” e saber que há o que aprender com
ele, que se pode concordar ou discordar dele. Dialogar, verbo
reflexivo: só se dialoga quando ambos estão dispostos a mudar suas
convicções, suas posições – fora disso é debate, é mesa
redonda, é colóquio, é palestra, é aula, é a academia.
Carneiro
não quer o diálogo, o que ele quer então? A inação, a
contemplação amarga do que há – que satisfaz o ego dos teóricos
críticos, por serem capazes de verem a realidade para além do véu
do fetichismo e da falsa consciência. Se for imprescindível a ação,
monta-se uma mesa redonda em desagravo ou apoio, organiza-se um
colóquio, escreve (mais) um texto; se não, deixar tudo como está,
para ver se piora, para ver se acontece algo – aquilo que o grosso
de nossa esquerda acadêmica há tanto tempo propõe. Pequenas
mudanças não os interessam e as grandes eles não são capazes.
O
Festival BaixoCentro pode ser reificado, fetichizado, pode não
questionar a essência do capital, pode não propôr a revolução,
pode ser falha ao esquecer das “populações autóctones”, ao se
centrar na oferta de produtos culturais; mas ele tenta fazer algo,
tenta sair dessa inação necrófila, dessa contemplação
desesperançosa. Ele tateia perguntas, ele ensaia saídas, ele abre a
possibilidade de mudanças – que a academia, ressentida e
rancorosa, tenta sufocar. De minha parte, ao invés de me vangloriar
da certeza do fracasso, eu prefiro arriscar a errar. Ao invés da
amargura passiva que só aceita que se seja feliz depois da
revolução, prefiro protestar contra o capital “com o amor erótico
presente em ações lúdicas, estéticas e simbólicas”. Sou a
favor das experimentações que abrem o devir para inesperados!
São
Paulo, 03 de abril de 2013.
Daniel
Gorte-Dalmoro nunca fez nada de útil ou que presta. O mais perto que
chegou disso é ser agitador e editor de uma revista eletrônica de
“artes antiartes heterodoxias”, a Casuística
[www.casuistica.tk]. Já foi membro do MAP, PEPMA, PQPPFFC, ETZN,
mIRC, ICQ, MSN e Facebook. Tem um blogue
[www.comportamentogeral.blogspot.com] e pros seus pais e na
bilheteria dos cinemas diz que é estudante.
ps: não
conheço, não faço idéia de quem seja a pessoa Silvio Carneiro.
Estou aqui numa discussão entre atores políticos.
ps2: esta
resposta só foi publicado hoje, dia 03 de abril porque tomei
conhecimento dele ontem.
ps3: Antes de acharem que o texto do Carneiro puxa uma discussão sobre a ocupação dos espaços públicos, vale lembrar que ele, na verdade, continua: quem inicia o debate, através da ação, é o BaixoCentro.
ps3: Antes de acharem que o texto do Carneiro puxa uma discussão sobre a ocupação dos espaços públicos, vale lembrar que ele, na verdade, continua: quem inicia o debate, através da ação, é o BaixoCentro.
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