sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Para quem não soube viver, a morte é sempre desespero [Diálogos com o teatro]

Na internet os algoritmos me indicam o espetáculo de palhaço "Não aprendi dizer adeus", de Bárbara Salomé, com direção de Rafaela Azevedo, na Galeria Olido - espaço que tantas e tantas vezes frequentei, quando as apresentação do Fomento de Dança eram apresentadas ali, e não no “gueto” do CRD. A sinopse pareceu interessante - uma palhaça defronte o inescapável aprendendo a lidar com o fim - e seria um dia depois de eu completar o fim da minha casa de Pato Branco, o fim de um ciclo de 40 anos da minha vida, quando alguns dos móveis que foram de meus pais e meus avós chegariam à minha casa em São Paulo - fosse tempo da perda da Misson, eu buscaria sinais nisso, mas agora apenas acho que foi coincidência, com probabilidade estatística calculável. 

Achei que poderia me ajudar a lidar com mais essa perda de uma forma mais leve: meu DJ Interno (já comentado em alguma outra crônica) tratou de preparar o clima, não me autorizando a falar o nome da peça sem emendar “mas tenho que aceitar/que amores vem e vão” (foram quatro dias dessa tortura interna, toda vez que eu lembrava que não queria perder esse espetáculo!); contudo mais que leve, a peça é leviana.

Bárbara sabe jogar com o público, sabe cativar a plateia para jogar com ela, e ainda que tenha alguns bons momentos - talvez seja um entretenimento razoável, no geral -, o espetáculo em muitos momentos vai por caminhos pobres, com piadas de duplo sentido, dignos de entretenimento televisivo da década de 90, com pitadas que me lembraram os piores comediantes do stand up tupiniquim (cujos nomes nem merecem ser citados aqui). 

Não há leveza nem delicadeza para tratar de um assunto que permeia a vida de todos, mas que é reiteradamente negado pela nossa sociedade: Guy Debord comenta que a ausência social da morte é um reflexo da ausência social da vida. Não por acaso, na indústria cultural, fora da banalização dos filmes de ação, quando a morte de pessoas e de moscas são equivalentes, poucos filmes se arriscam por essa senda. O teatro, sem tanta necessidade de agradar a massa indistintamente, se arrisca mais (e faço questão de destacar a maravilhosa “Buraquinhos, ou o vento é inimigo do Tucumã”, do Jhonny Salaberg, que soube juntar crítica social com esse fato comum a todos os seres vivos). Não foi o caso da peça de Bárbara e Rafaela.

Creio que a demonstração mais eloquente dessa dificuldade em saber estar diante da morte - e, por consequência, da vida -, está quando a personagem aceita que realmente está diante do fim e resolve aproveitar a vida, e o faz bebendo e cheirando tudo o que pode. Num tema tenso, me pareceu de grande a indelicadeza com quem teve perdas por conta do abuso de drogas. A cena arranca risos da platéia, mas me parece mais um riso condicionado, um ato-reflexo, talvez um riso ressentido, não sei, uma convenção de achar graça no abuso de substâncias psicotrópicas, mesmo que a cena não tenha qualquer graça. 

Me lembrou a fala marcante de uma peça a que assisti há mais de dez anos, ainda em Campinas, inspirada em um conto do Mia Couto, com o Eduardo Okamoto: nela um homem gasta o que tem e o que não tem na festa de bodas da filha; instado a parar com aquela festa que se prolonga por dias, o homem pontua que as pessoas ali, naqueles dias, “estão bebendo para comemorar, e não para esquecer”. 

Em "Não aprendi dizer adeus" a protagonista não soube fazer sequer uma elegia à vida que se vai - e que permanece para além dela. Mais que isso: mostrou um grande desconhecimento da vida, inclusive no que psicotrópicos podem ter para o enriquecimento da existência: sua apologia a esse “aproveitar a vida” (o tal "como se fosse o último dia", muito difundido na nossa cultura) é antes um grito mudo de desespero que um efetivo desfrute. Evidenciou também um desconhecimento do que é estar com alguém diante do fim - seja alguém que já não esperava mais nada da vida, seja quem ainda fazia planos, até ver que teria que abrir mão de todos os eles e todos os que poderia vir a ter. Uma conversa (pode ser via livros) com um médico ou médica paliativista já daria um pouco de base para tratar do tema e evitar fazer um espetáculo desse nível.

Ao cabo, saio da peça com a impressão de que, de fato, não aprendemos (enquanto sociedade) a dizer adeus. O pior: é não aprendemos ainda a estar na vida de um modo que ela possa ter sentido na sua completude - inclusive na morte. E não foi “Não aprendi dizer adeus” quem abriu uma possibilidade de repensar.


13 de janeiro de 2023


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