terça-feira, 8 de abril de 2025

Macedo, o rapaz multi-tarefas [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

 Disse em meu texto passado que Macedo merecia (mais) um texto. Como comentei, ele entende tudo do trabalho. Se Pacheco, a nova funcionária, teve como trote ter que aguentar a conversa de Floriano, o nobre colega Macedo tem seu trote permanente, que é ser tutor em todos os assuntos de quem chega ao setor (e desta vez são dois), o que não deixa de prejudicar um pouco seu trabalho - mas confiamos que ele, no fim, dará conta de resolver tudo a contento, como sempre o fez. Não que sejamos acomodados, é apenas saber que ele tem competência suficiente para tutorar a nova colega, ajudar os antigos e ainda cumprir suas demandas - tudo dentro de oito horas. Poderíamos ajudá-lo? Poderíamos. Porém, como o próprio tempo verbal aponta, atuamos no futuro no pretérito, esperando que esse futuro chegue, mas ele nunca vem. Se algum dia ele não souber de algo, serei o primeiro a ajudá-lo, se eu souber como fazer (apesar que, se ele não souber, nós do setor que certamente não saberemos).

Se entende tudo do trabalho, fora dele Macedo reconhece sua ignorância, apesar de sua vasta cultura geral em assuntos muito aleatórios. E se Goreti, que também se diz um ignorante (e eu complemento: nos dois aspectos do termo), faz faculdade atrás de faculdade, geralmente desistindo no último ano, quando é preciso fazer estágio (como sênior, não tenho mais idade para isso, ele justifica), Macedo foca nas artes manuais. Maceda, por seu turno, se dedica à organização [bit.ly/cG230405] e a artes manuais mais artísticas.


Podemos dizer que ambos são versões proletárias do Rodrigo Hilbert, a Pequena e o Pequeno Hilbert. Até dá para parafrasear o Pequeno Wilber, dos Sobrinhos do Ataíde: estava o Pequeno Hilbert lépido e saltitante andando pela cidade com sua lancheira divertida do Patolino quando de repente se deparou com um pedaço de madeira abandonado na rua... [https://bit.ly/cGYTpeqwilber]

Voltemos à seriedade. Há tempos que nem ele nem Maceda compram carteiras e bolsas: quando enjoam da antiga, ele elabora e costura um novo modelo. Roupas? Ao menos as mais simples saem da própria casa. Em um ano, Macedinho até agora só teve fraldas, meias e calçados comprados. Precisa instalar um móvel? Chame um montador, porque nosso Pequeno Hilbert prefere construir o seu. Caneta? Ganhei uma feita de pena, em que só faltou ele produzir a tinta. 

Contudo, foi no casamento que essa dupla mostrou de vez suas habilidades. Enquanto a Pequena Hilberta fez toda a decoração do casório para 150 pessoas, com convites pintados em aquarela, sousplats bordados com fios de bambu em folhas de bananeira (ela diz que costela de Adão seria melhor, mas o nome da planta a desestimulou) e todo um jogo de luzes para quando discotecasse, o Pequeno Hilbert se dedicou a fazer as alianças, apenas. Tenho certeza de que só não fizeram também o jantar porque não tinham tempo hábil para tanto trabalhando oito horas. E porque as maçarocas que Macedo cozinha talvez causassem estranhamento entre os convidados (o pão de amêndoa de Maceda bem que cairia bem). Ao menos teve o maravilhoso licor de jabuticaba que Macedão e Macedona fazem.

Eram outros tempos, diz Macedo, com Macedinho as coisas mudaram de figura. Hoje o máximo que ele diz fazer são pequenas coisas, como o porta crachá todo incrementado com que apareceu semana passada, com direito a um led para caso seja necessária uma lanterna.


08 de abril de 2025


Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Floriano, o colega que sabe de tudo [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Colegas que sabem tudo me cansam, admito. A depender do meu humor, me irritam (mas depois passa). E quando falo tudo, digo tudo tudo (tipo jornalista), e não tudo do trabalho, como Macedo, que pode ser questionado no que for do setor que sabe em detalhes e ainda apresenta as provas do que está afirmando. Aposto que se algum dia Macedo não souber de algo vai afirmar seu desconhecimento com a mesma modéstia peremptoriedade que o faz quando sabe - apenas que esse dia ainda não aconteceu. E que conste uma vez mais: ele sabe tudo do serviço. Porque fora do serviço, Macedo pode não saber tudo, mas merece um texto à parte.

Enfim, aqui eu queria falar do Floriano e não do Macedo. Diferentemente do Rivarola [bit.ly/cG230413], o doutor Sabujinho que não está mais entre nós, pois foi transferido (e eu não soube de ninguém que assumiu seu posto), Floriano não é puxa saco. Talvez seria melhor que fosse, sobraria menos tempo para conversar com os colegas. 

Reconheço, todavia, uma grande vantagem de Floriano frente Rivarola: quando é preciso comandar uma reunião, sabe conduzi-la de modo objetivo e, mais importante, divertido. São reuniões com boas gargalhadas e que terminam sem nada importante decidido, como é comum nesse tipo de evento. Nessas situações ele tem uma modéstia que não condiz com seu talento de stand upper amador - e resiste a fazer um curso e começar de fato nessa área.

Fora das reuniões, em compensação, Floriano é um cara pesado, como diriam nuestros hermanos. Pesado não por reclamar, e sim por seu jeito de falar enfadonho sobre todos os assuntos como se fosse formado na área, com a assertividade de um aluno de primeiro ano de graduação nas reuniões de fim de ano com a família.

Por falar em fim de ano, se o fim do ano passado terminou com medo de um passaralho, por ora o que temos são mais contratações. Basso, recém contratado, mostrando o quanto é competente (é sobrinho do chefe) [bit.ly/cG250121], foi promovido, e já substituído por um novo funcionário - que parece um tipo simpático (até oferece chocolate), trabalhador (não sei se isso é um elogio), e não é seboso como seu antecessor. Além dele, ainda chegaram uma estagiária e outras duas funcionárias. Se é preparativo para o tal passaralho (eu acho que é), estão fazendo muito bem, porque o clima aliviou, e não fosse por aquela sábia sabedoria do Seu Madruga, “Não há trabalho ruim; ruim é ter que trabalhar”, diria que estamos quase bem.

Enfim, eu queria aqui reclamar do Floriano e não do trabalho. Estava eu, ontem, contente e feliz no meu canto (minto, estava como sempre, cansado e desanimado de ter o couro esfolado sem a devida remuneração, como sói a todo trabalhador, num trabalho sem sentido, como sói à maioria dos trabalhadores), quando vejo Floriano se aproximar. Temo. Tremo. Travo. Estou no meio da leitura de uma notícia importantíssima sobre o futebol, não queria interrompê-la. Ele vem mesmo. Estica a mão para me cumprimentar, educadamente devolvo o gesto. Pergunta se estou bem, respondo com o protocolar “tudo bem” e devolvo a pergunta, que ele responde como sempre: “Não tão bem quanto vossa senhoria, mas estou bem”. Pergunta se sigo minha rotina de exercícios e nessa hora cometo a besteira de devolver a pergunta. Pronto, lá vem ele com seu palanfrório. Sobre sequências de calistenia que ele não faz; as vantagens de caminhadas seguidas de tiros curtos de corrida intensa, que ele também não faz, de dieta com bastante proteína - que parece que ele faz -, e alguns assuntos mais, para terminarmos em uma palestra monocórdia sobre artes marciais. E eu ainda fui tentar interagir e falar de systema e samba, ao que ele comentou por alto (e não me corrigiu que é sambo e não samba), para logo encetar uma aleatória arte marcial tailandesa, a Muay Lao, que ele deve ter visto na wikipedia. Isso durou uns trinta, quarenta minutos, mas foi como se eu tivesse tido oito horas de trabalho intenso.

E olha que ainda tive sorte. Porque logo ele foi se apresentar à nova funcionária, Pacheco, que o chamou para pedir uma ajuda. Podemos dizer que foi um verdadeiro trote, talvez até mais violento que raspar o cabelo, dar um apelido qualquer e fazer andar de elefantinho (em tempo, quem me acompanha desde o Trezenhum. Humor Sem Graça. sabe minha opinião sobre trotes universitários, a chamada “Semana Hitlerista da Universidade”: resquícios de nazifascismo naturalizados e louvados por muitos, de modo que não me surpreende que boa parte dos neofascistas deste país terem diploma superior). Foi mais de uma hora nessa conversinha de cerca-lourenço (como está sendo esta crônica) em alto e bom som, ao menos para quem estava num raio próximo, como era meu caso. 

Contou da água esmerdada do prédio aqui próximo, o Martinelli, e o porquê ter acontecido lá e não onde trabalhamos, ainda que corrêssemos o risco, por conta de sei lá o que de engenharia que o prédio tem, dado seu ano de construção; apresentou umas quatro doenças diferentes que ela poderia ter e não saber, dando os sintomas e passando os remédios que deveria buscar, inclusive com interações medicamentosas a evitar, casos estivesse com duas dessas enfermidades (nenhum momento sugeriu buscar um médico, que seria o mais razoável, ainda mais que duas das moléstias eram razoavelmente graves) e terminou com uma longa fala sobre segurança pública, ações policiais e quetais, dentro do mais raso senso comum, sob a justificativa de ter um amigo PM com quem conversa sobre o assunto - como se PM (ou qualquer militar)  entendesse patavinas de segurança pública. 

Pacheco fazia que sim com a cabeça e fingia se mostrar interessada, enquanto tentava achar uma brecha para perguntar algo do trabalho, sem sucesso. Logo chegou outro colega, ele se despediu d’ela e foi conversar com ele, deixando-a com sua dúvida, quase como um psicanalista lacaniano que faz o corte em seu analisando no momento da fala mais importante a ser dita.

Claro, não se compara ao assediador do Rivarola, mas Pacheco não merecia uma decepção, digo, recepção dessas. Trote precisa ter limites!


04 de abril de 2025


Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas


segunda-feira, 24 de março de 2025

O vizinho invisível [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Não que eu seja fofoqueiro, longe de mim! Não sou de inventar nada, nem exagerar histórias, muito menos falar dos outros pelas costas. Na verdade, sou apenas uma pessoa observadora e atenta, especialmente no que diz respeito às ações alheias.

Como comentei alhures, ao lado do meu prédio levantaram uma torre de trinta andares - dessa arquitetura em voga por SP, que parece essas gaiolas de expôr galinhas em loja agropecuária do interior -, de modo que da minha cozinha dá para ver a sacada de algumas das kitnets - agora rebatizada de studios. São três apartamentos que tenho visibilidade de uma nesga do interior, além da varanda. Pela alta rotatividade que teve nos dois primeiros anos, suspeitava serem para locação de curta temporada, mas que os últimos inquilinos me fizeram ficar em dúvida.

O de baixo está vazio desde sempre. O do meio já teve três ou quatro moradores nesse curto tempo. Atualmente, há mais de um ano, acho que mora um jovem, ainda que tem dias que imagino ser uma república, outros acho que é um casal. Sei que não houve mudança porque são os mesmos móveis e estilo: jovens na sacada, em conversas animadas e barulhentas; som potente, com baixos marcantes e um gosto musical ok (nada de sertanejo e bolsomusic). O que chama a atenção é a discussão mensal de um homem com uma mulher. Se é sempre a mesma ou uma diferente por mês, não sei. O que sei é que o rapaz grita, berra, dá chilique, enquanto a moça tenta manter uma conversa racional. Não tem como não ouvir. A mulher, espero que não seja a mesma, ou ela precisa de ajuda profissional. Se for uma diferente a cada mês, parece que o jovem tem um modo repetitivo (e nem tanto peculiar na nossa sociedade machista) de se livrar delas e precisa de ajuda profissional também. 

Contudo, é o apartamento de cima que me chama a atenção. Após um tempo vazio, três inquilinos passaram pelo lugar, o mais longevo deles pouco mais de meio ano. O atual está há mais ou menos o mesmo tempo.

De início, apareceram coisas de limpeza na nesga do interior que me permite observar. Vez ou outra a luz aparecia acesa, às vezes a noite toda, o que me fez desconfiar que ainda não havia se mudado. A situação permaneceu assim por muito tempo, sem nenhuma mudança. De repente, uma planta! Ah, agora vão se mudar, pensei. Mas em menos de uma semana a planta sumiu. Um (bom) tempo depois, os apetrechos de limpeza sumiram também, a luz começou a ficar acesa mais dias, inclusive aparecendo ligada e desligada na mesma noite. Agora se mudaram, pensei novamente. E nada de ver uma alma viva no referido apartamento - segue tão silencioso quanto o apartamento dois andares abaixo. Há um mês uma mudança radical: apareceu um varal de chão na sacada, com um pano de chão pendurado. E assim segue até hoje. Porém, também notei que algumas vezes a porta estava fechada, em outras, aberta. Sinal de vida humana pisando ali!

Ontem à noite, diante da luz do banheiro acesa e do vapor no vitrô sempre fechado, resolvi deixar a timidez de lado e ficar encarando a maldita sacada, ver se aparecia alguma pessoa. Lembrei que quando adolescente dizíamos que se olhássemos insistentemente para a nuca do garçom ele se incomodava e vinha nos atender. Sempre deu certo, desde que tivéssemos certa paciência e erguêssemos o braço quando ele se virasse, às vezes duas ou três vezes. Fim da divagação pertinente. Como disse, a luz do banheiro estava acesa, logo, a pessoa seria obrigada a passar pelo trecho que consigo ver. Fiquei ali, de gaiato, um bom tempo, disposto a aguentar o tempo que fosse. Pois foi então. Algo me chamou a atenção. Era Calvin, meu gato-jamanta, se esfregando na minha perna e miando atrás de carinho. Olhei para ele, disse silenciosamente não, e voltei a olhar para o studio de cima. A luz do banheiro já estava desligada. 

Fosse uma casa antiga, e este poderia ser um texto de terror. Mesmo se fosse um prédio velho poderia dar essa interpretação: em algum apartamento de A vida: modo de usar, do Perec, há o fantasma de alguém que ali residiu e morreu, e que volta para assombrar os vizinhos com atos disparatados, algum parente do Fantasma de Canterville. Mas sendo novo, nem deu tempo para as assombrações acharem o endereço, já que, pelo que vi no Instagram, assombrações e quetais não podem usar o maps; pensei que poderia ser o Dalton Trevisan tentando vida nova como anônimo em SP, depois de ter plantado a notícia de sua morte, mas não faz nenhum sentido para o Vampiro de Curitiba sair de Curitiba, ainda mais com a idade que tinha; quem sabe algum terrorista húngaro, como no porão de Rubem Braga; algum foragido da polícia federal ou, mais emocionante, um espião vindo do futuro para me espiar, ver qual lógica paraconsistente eu segui a ponto de me tornar o que hei de me tornar em breve (e que nem eu sei, antes que me perguntem)? 

Decidi parar de divagar e pôr os pés no chão, encarando a coisa do jeito mais rasteiro e razoável possível. Primeiro premissa: o apartamento é novo, todo tecnológico; segunda premissa: ninguém mora no apartamento; terceira premissa: vez ou outra aparece não sei se o inquilino (seria um quarto para encontros íntimos, como em A insustentável leveza do ser?) ou alguém para fazer faxina (por isso a porta aberta às vezes); conclusão lógica: nada de fantasmas e conto de terror, certamente é apenas uma Alexa se sentindo abandonada,  tentando chamar a atenção.


24 de março de 2025

Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas

segunda-feira, 17 de março de 2025

O garalho de meu sobrinho [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Meu sobrinho veio passar o sábado comigo, a pedido do próprio, que me acha legal – para infelicidade de meu irmão e minha cunhada. Já contei alhures que ele estuda numa escola de metodologia Wondermort, e por isso os pais o privam de muitas coisas – não que precisem ensinar a ser um canalha super adaptado ao mundo cão laboral em que vivemos, mas acreditar que criar uma criança alienada do mundo vai lhe dar repertório quando crescer não me parece muito razoável. Não sei bem a idade de meu sobrinho, suponho que tenha algo entre sete e doze anos, mas não é certeza – eu achava isso há uns dois anos, mas pelo visto ele era mais novo.

Pois fomos ao teatro, ver uma peça infantil que muito lhe agradou – houve consentimento de meu irmão, que deve ter analisado bem a sinopse, antes de autorizar -, tanto que o moleque ficou matraqueando sobre o espetáculo por muito tempo. Depois do almoço viemos para minha casa, fazer hora e jogar algum jogo de tabuleiro permitido até que o sol arrefecesse um pouco (porque anunciaram que a onda de calor havia passado, mas esqueceram de avisar que só a onda passaria, o calor persistiu) e fôssemos ao parque.

Nesse ínterim, eis que contra todas minhas admoestações, Carnegie, o Arauto do Apocalipse, me manda uma mensagem de trabalho no whatsapp. É de conhecimento público e notório que se tem uma coisa que me causa ira é receber mensagens de trabalho fora do expediente; que dizer, então, em pleno final de semana – já sacrifico quarenta horas semanais de minha vida, o pouco tempo que me resta quero utilizá-lo para mim, nem que seja para passá-lo com meu sobrinho. Acho que desta vez me fiz entender quando perguntei para ele se gostaria de receber uma figurinha do Corinthians às onze horas da noite de domingo, depois do Palmeiras tomar uma goleada do Timão em pleno Parque Antártica.

Diante de tão inoportuna mensagem, não tive como não conter a exclamação “caralho!”, dita assim, clara e límpida, na frente de meu sobrinho puro e ilibado. Consegui me conter a tempo de seguir enfileirando palavrões, mas ele ouviu e se animou com a palavra, parece que a sonoridade lhe agradou:

Caralho! Caralho! Caralho! Que significa caralho, tio Sérgio?

Não falei caralho.

Falou, sim.

Não. Foi garalho, com g de grilhões, respondi – nessas horas sempre gosto de ampliar o vocabulário do menino, ainda que ele raramente me pergunte o que significa a palavra que ensino.

E o que significa garalho?

Quer dizer “Que coisa”. Recebi uma notícia aqui, e ao invés de dizer “que coisa”, acho mais fácil e mais bonito falar “garalho”. 

Vi que havia sido infeliz na minha colocação e complementei: 

Mas você, que é criança, melhor seguir dizendo “que coisa”, está bem?

Convenhamos, não menti de todo: os linguistas vão dizer que vale o contexto da palavra mais que seu significado cru. Ele anuiu, se deu por conformado e seguimos nosso sábado.

Na quarta-feira meu irmão me ligou. Quando isso acontece, sei que lá vem bronca.

Escuta aqui, Zé Bobão (sim, meu irmão me chama de Zé Bobão quando está muito puto comigo, era como ele me tirava do sério quando éramos criança), já não pedi trocentas vezes para você não falar palavrão perto do meu filho?

Palavrão?, perguntei como quem não está entendendo o motivo de tudo aquilo.

Sim! E ainda ensinou ele errado!

Como assim?!

Não seja cínico! O menino agora está sofrendo bullying na natação. Estão chamando ele de garalhinho.

Como assim?! Por que isso?!

Aconteceu qualquer coisa na aula, e ele soltou um sonoro “garalho”. Ao repetir uma segunda vez, tentaram corrigi-lo e ele insistiu - ainda insiste - no tal garalho. Se fosse ensinar um palavrão, ensinasse logo certo, caralho!

Espero que ele não esteja aí perto. Ou você está querendo ensinar palavrão para ele?

Ele está na aula. E pare de dar uma de desentendido!

Claro, resumi um pouco o sermão do meu irmão, porque ele é bastante prolixo quando diz respeito a me dar broncas envolvendo seu pimpolho (espero que seja um pouco mais breve com a criança, porém não creio). Nesse meio tempo, consegui pegar o dicionário e ver se não existia mesmo a palavra garalho. Havia “garalhar”, que significa “gralhar”. Não ajudou muito, mas gralhar, além de ser barulho de gralhas, tem como sentido figurado “tagarelar”. Ah, salvador pai dos burros!

Escuta aqui, eu falei e quis falar garalho, mesmo, nunca pensei em caralho!

Ah, conta outra!

É sério. Ele voltou do teatro todo empolgado, não te contou?

Sim, gostou muito da peça. Não fuja do assunto.

Então, veio que veio tagarelando, e eu disse “que garalho”, “que tagarela”, do verbo garalhar.

Você quer que eu acredite nessa lorota idiota?

Pois busque no dicionário.

Ele fez a busca e teve que dar o braço a torcer, ao menos eu achei que seria assim - nessa hora também fui puro e ilibado.

Certo, existe garalho. E por que você deu o significado errado da palavra? Quando perguntei se ele sabia o que significava garalho, ele disse que era “que coisa”.

Que coisa! Sério? Acho que me entendeu errado. A certa altura eu falei, “Que coisa, garalho”.

Ele disse que você explicou que garalho significava “que coisa” de modo mais bonito.

Ainda tentei desconversar, entretanto, no fim, tive que assumir o caralho involuntário. Ele não me deu razão para a vocalização do referido vocábulo, apesar de eu tê-la. E ainda emendou mais um sermão - haja paciência, o pai me enche mais que o filho! Próxima vez que me escapar um palavrão, preciso consultar o dicionário antes, para a desculpa colar melhor.


17 de março de 2025



Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Meu primeiro carnaval (ou, a decadência de um velho roqueiro [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça].

Sim, é isso mesmo que a desocupada leitora, o desocupado leitor leu: este velho roqueiro foi a um “bloco” (já já explico as aspas) de carnaval. E, não, não foi um bloco de róque, foi um show da Luísa Sonsa, mesmo. Mas eu posso me explicar - e contar a bad trip que tive nesse rolê.


Há anos Brotinho insiste para irmos a um bloquinho, e eu, que do carnaval gosto do feriado (e por isso sempre fui a favor, na verdade acho que deveria ser a semana toda), sempre recusei com as melhores escusas, irretocáveis: não gosto, preguiça, sol, calor, música ruim, muita gente, sem falar que não faz sentido falar em bloquinho, assim, no diminutivo, se nele estão milhares de pessoas amontoadas em que você nem escuta o som direito. Se tudo isso não sensibilizasse seu coração de pedra carnavalesco, havia sempre a dor de cabeça na manga.

No sábado, Brotinho me chamou para ir ao bloco do Supla e recebeu meu lacônico e preciso “não”. Não insistiu e foi. Era cedo quando apareceu na minha casa: o bloco estava atrasado mais de duas horas e ela cansara de ficar à toa sob o equivalente a dois sóis - eu a esperava para às seis e ainda nem havia começado a preparar o almoço. Estava frustrada e fiquei com pena d’ela não poder aproveitar o sábado de sol e calor suando ainda mais enquanto esbarrava em desconhecidos tão suados quanto.

No domingo, acordamos cedo e tudo ia bem até que no café da manhã ela me perguntou se eu havia dormido bem. Respondi que sim e ainda acrescentei que felizmente não estava fazendo tanto calor - tanto na madrugada quanto na manhã - quanto nos dias precedentes.

Bola levantada, bola chutada.

Então vamos aproveitar e ir no bloquinho da Luísa Sonza?

Já disse: carnaval não é comigo. Se eu não quis ir ontem nos bloquinho de róque, por que iria hoje, no da Luísa Sonza, que eu nem conheço?

Eu já coloquei ela algumas vezes para tocar aqui.

Então, por que ir no bloquinho de uma cantora que eu nem lembro, felizmente?, tive vontade de responder, mas não quis uma DR logo pela manhã. Outra falha estratégica. Me limitei ao simples Bartlebyano, sempre propício para manhãs, ainda mais de domingo:

Acho melhor não.

Foi então que ela deu o golpe baixo, em que não consegui achar saída, me olhando com uma cara toda fofa de quem diz:

Porra, caralho! Já fui em rolê furado e miado contigo, escuto teus róque sonolentos (ela nunca disse isso, mas sempre que ponho Mogwai, Explosion in the Sky ou algo assim, ela acaba pegando no sono; além de achar que estou brincando quando digo que Mogwai é a melhor banda que já existiu) e você não pode me acompanhar num bloquinho tranquilo, num dia que, você mesmo disse, não está tão quente?

Tudo isso eu deduzi do seu olhar fuzilante e resolvi ceder.

Aos preparativos. Lembrei de uma amiga que dizia que a graça do carnaval era a comunhão com os desconhecidos numa alegria sem sentido - e movido a muito álcool. Como praticamente não bebo, resolvi levar um baseado, se não para entrar em comunhão com os bêbados suados, para tentar não ouvir muito do show (até então eu chamava de “bloco”) da Luísa Sonsa. Ainda me fantasiei de turista para não destoar tanto da festa: bermuda social, camiseta anti-UV, camisa florida por cima, um chapéu de catar ovo e duas strass autocolantes postos pelo Brotinho - umas pintinhas brilhantes - nas minhas maçãs do rosto.

Fomos. Erramos a estação, caminhamos um monte sob o sol de 32º C, chegamos, passamos pela revista, dividimos uma latinha e ficamos ali, em meio a um povaréu, esperando o show começar, bem perto do caminhão de som que servia de palco - e que tinha um telão, mas não passaria o show para os que estavam longe pudessem assistir, o que achei desrespeitoso.

Dei um primeiro pega pouco antes da apresentação começar. Quando começou, por incrível que pareça, até estava gostando do rolê - durou cinco minutos, se muito. Depois disso, achei que já tinha dado minha cota, porém não podia falar para Brotinho. Decidi dar mais um pega, para seguir suportando a festa. E aí, na mistura de maconha, sol escaldante, calor tórrido, pouca ventilação, um monte de gente aglomerada ao meu redor, suor, som alto, leques batendo assustadoramente, fome, sede e um pouco de álcool, eis que começo a passar mal. De início achei que era uma dor de cabeça, entretanto, quando as coisas começaram a girar - lentamente, mas girar -, vi que estava era com a pressão caindo, mesmo. Até pensei atribuir a bad trip a um berinjonha, que fez Goreti passar mal uma vez [http://bit.ly/cG230102], mas lembrei que a caponata de berinjela havíamos deixado para comer depois da folia (ou “folia”).

Brotinho achou por bem irmos para longe do palco, sair da muvuca, para prevenir que eu não fosse pisoteado, caso desmaiasse. Delicado da parte dela, ainda que provavelmente só aceitou isso para que eu não estragasse sua festa. E assim passamos o carnaval, sempre na rabeira dos foliões, ela dançando alegremente e eu sentado, sentindo o que estava sentindo. Para ver se eu melhorava, ela ainda me comprou um refrigerante de cola - uma das coisas mais intragáveis, na minha opinião -, e talvez pela primeira vez na vida bebi uma latinha inteira. Para ser pior, só faltou roubarem meu celular, e isso não deve ter acontecido porque não os levamos. O que, ao menos, trouxe uma outra ótima consequência (além de continuar com o aparelho): se não tem registro, não aconteceu. 

Ao cabo, voltamos para casa, os dois cansados, acabados - ela de pular, eu de passar mal -, eu queimado nos joelhos, mãos e pescoço - onde passei protetor solar, como pernas e rosto, até fiquei bronzeado. Foi aí que entendi porquê tantas mulheres irem de biquini no carnaval: retocar a marquinha.

Se, na segunda, alguém da bancada me perguntasse onde me queimei desse jeito, diria que no Ibirapuera (enquanto sentar na grama ainda não é pago). O problema era que as pintinhas brilhantes - as strass autocolantes - não pegaram sol, e me restaram as marcas delas, brancas em meio ao rosto bronzeado, parecendo duas enormes espinhas cheias de pus, pedindo para serem espremidas para ver qual distância conseguiriam alcançar. Enfim, ao menos sobrevivi; e dos males, o menor.

Mas eis que, domingo, mesmo, Brotinho entra no Instagram da artista e me enxerga no vídeo do início do show, feito a partir de um drone que voava baixo. Não tem como negar: sou eu a araucária que se destaca pelo tamanho e pela camisa ridícula, com cara de quem está pensando na morte da bezerra. E ela ainda me manda o print do vídeo, o que me pareceu quase um ato de chantagem! Ou seja, para além de passar mal e sair todo traumatizado, cheio de glitter que nem havíamos usado e ainda não saíram de todo, queimado e com duas espinhas purulentas falsas, nem tenho mais como negar fui ao bloquinho da Luísa Sonsa. Diante disso, prefiro eu contar, antes que se espalhe como fofoca e cresça de tamanho. Foi só o da Luísa Sonsa!


24 de fevereiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Sabonete da discórdia [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Este fim de semana meu sobrinho, sem querer, acabou gerando uma pequena crise entre mim e o Brotinho.

Quando meu irmão, sua esposa e seu filho chegaram, eu estava no banho. Não me apressei por isso, afinal nos vemos seguidamente. Saí do banheiro, já entrou correndo meu sobrinho - que tem algo entre seis e doze anos, não sei - dizendo que a marmota estava se mordendo para sair da toca. Sim, meu irmão se queixa e me recrimina toda vez que vem aqui por ter ensinado essa piada do final dos anos 90 e que hoje soa como de tiozão.

Cheguei na sala e tratei de começar pelas perguntas de praxe, ver se meu irmão esquecia da marmota nesse ínterim. Melhor que tivesse lembrado e não dado atenção ao filho. Eis que a criança vem correndo do banheiro e me interpela:

Credo, tio, por que está aquele cheiro de lavanderia de petshop no banheiro?

De pronto Brotinho saltou do sofá, dedo em riste, alternando sua direção entre mim e meu sobrinho:

É isso! É isso!

E com o ânimo que meu sobrinho falou sobre a marmota, ela pegou meu irmão e a cunhada e os levou até o banheiro.

Venham! Venham ver se ele não tem razão!

E lá foi ela expôr meu ridículo ao meu irmão. Olhei para o sobrinho, pronto para fazer um draminha (não era nada que merecesse dar bronca), ele devolveu com um sorriso inocente de quem me prestou uma grande ajuda (o que faz com que acredite que ele esteja entre seis e oito anos).

Eles voltaram às gargalhadas. Gargalhavam de mim, graças à ingenuidade do sobrinho. E Brotinho, ao invés de me ajudar, ir apenas ela ao banheiro comprovar sua tese, ou melhor, a tese do sobrinho sobre o cheiro do meu sabonete, ligar o exaustor e esperar o cheiro ir embora, não! Ela preferiu me expôr, e fazer com que meu irmão tirasse sarro da minha cara a tarde inteira - com direito a apelidos bobos de quarta série, mas daqueles que incomodam. E de nada adiantou reconhecer que, agora que falaram, eu também sentia o cheiro de petshop.

Foi então que a indisposição entre mim e Brotinho começou:

Eu vinha mesmo sentindo um cheiro estranho em você por estes dias, achava que poderia ser a roupa que demorou para secar. Agora que sabemos que é seu sabonete, dá para jogar fora e está resolvido, disse ela.

Eu comprei uma dúzia.

Como assim?!, Brotinho trazia um meio sorriso nervoso, de quem espera uma pegadinha tosca.

Gostei do cheiro, comprei vários...

Eles estavam em promoção?, questionou meu irmão, abrindo outro flanco na batalha.

Mas não foi por isso!

Ainda que foram baratos, não vai custar tanto jogar fora, né?, insistiu Brotinho

Já disse, gostei do cheiro de petshop.

Mas te abraçar vai me trazer a imagem de um cachorro ainda úmido com uma estrelinha na testa. Não precisa, né?

Vai parar de me abraçar só por causa do sabonete?

Meu contra ataque parecera certeiro, amolecia seu coração de pedra e faria ela parar de implicar com o cheiro de meu sabonete,

Claro que não! Se você gosta, tem que usar mesmo! Mas não vai ter como eu não te chamar pelo apelido que seu irmão te deu, meu Doguinho.

Porra! Doguinho, não. Apelido bocó, de quarta série.

Após agradecer por ter usado um termo de baixo potencial ofensivo na frente de meu sobrinho, meu irmão começou a fazer careta enquanto me provocava “Doguinho, eu sou Doguinho, eu adoro os tios e as tias do petshop”, apesar das admoestações de minha cunhada, que tropeçava nas sílabas do tanto que ria.

Doguinho, não!, fui enfático.

Que tal petinho, então?, propôs Brotinho.

Não sou garrafa plástica. 

Não teve como não discutirmos e nos acertarmos naquela mesma hora, como duas pessoas da pólis. Assim, chegamos a um meio termo: seguirei com meus sabonetes de petshop, sob a condição de não comprar mais depois desses, enquanto Brotinho me dará meia dúzia do que ela acha mais adequado, para ir alternando - fiz questão de meia dúzia para ela não comprar um fedorento, só para seguir me tirando, junto com meu irmão. Ademais - numa óbvia troca desigual - ela podia me chamar de Doguinho quando usasse meus sabonetes, mas (foi o que consegui barganhar) com parcimônia e apenas depois do banho, quando o cheiro fosse evidente.

Acordo de fim de DR firmado sob o testemunho de meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho, que nos abençoou com os dedos em forma de quem pede dinheiro.

O pior da DR foi à noite, quando ela me chamou de Doguinho e eu perguntei qual raça seria a minha. Melhor parar por aqui.


13 de fevereiro de 2025


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Três anos

 


Eu estou usando uma jaqueta cinza comprada no Paraguai em 1994, por aí. Com o tempo passou a ser de uso coletivo na casa - estava puída e com algumas costuras desfeitas, mas era confortável pelo uso e seguia quente sem excesso. Minha mãe usa uma verde (ao menos é o que daltonismo que ela me legou me permite perceber). Ao fundo, os azulejos de orquídeas que enfeitaram tantas e tantas comemorações de aniversário, a ponto de dizermos que se trata do brasão da família, e termos preservado na reforma da cozinha. Por falar aniversário, era aniversário de meu pai - faria 70 anos - no dia dessa foto. É também meu reencontro com ela, depois de quinze meses, afastados pela pandemia e por eu não ter carteira de motorista para poder visitá-la sem riscos - Vannucci, amigo meu ainda do tempo da psico, quem topou fazer essa viagem até Pato Branco, depois de termos feito o exame para covid, claro.

É a última foto que tenho com ela sem sabermos da doença - ainda que ela suspeitasse que algo não ia bem e por isso fazia uma bateria de exames.

Dali um mês eu estava de volta a Pato Branco - contando novamente com a boa vontade e a ajuda do Vannucci -, com meus gatos e minhas coisas, para viver os últimos meses de minha mãe ao seu lado.

Também voltar a morar “em casa”, depois de mais de vinte anos, e antes de perdê-la para a distância e a ausência de vínculos remanescentes com a cidade. Apesar de morar fora há tanto tempo, nunca deixou de ser minha casa - eu tinha a casa de São Paulo e a casa de Pato, refúgio para muitos momentos.

Pego para reler meu “Diário sem dias”, escrito durante esse período. O plano é lançá-lo em livro. A leitura não avança - não hoje. Relembro momentos bons desses meses. Busco fotos do período. Numa delas, de outubro, na “sala de baixo”, minha mãe está sentada na espreguiçadeira com Mima, a gata que a adotou, no colo, a estante que hoje está em minha casa (agora só tenho uma casa presente) ao fundo. Olha para a câmera com um leve sorriso, uma expressão tranquila - nem parece que está doente e sabe que lhe resta pouco tempo de vida.

Em outra, de janeiro, ela mexe no notebook numa escrivaninha improvisada (que hoje está na minha casa), e não fosse pela magreza incomum para ela, não daria para dizer que dali um mês ela partiria, ou melhor, se encantaria. Que bom, me diria depois meu irmão, sinal que ela viveu bem até o final. É um consolo. Mas segue fazendo falta, mesmo estando presente de alguma forma.

O mundo não é justo, me disse Phah ao conversarmos, ontem. De fato, não é. Nem justo nem injusto, que isso é medida da humanidade - o mundo apenas é. 

Faz três anos hoje.


11 de fevereiro de 2025

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Ladrão que rouba ladrão [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

O primeiro debate do dia na bancada foi se o ditado “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão” era válido. Disputávamos pelo sim e pelo não, quando Meirelles sugeriu irmos pela dosimetria dos delitos. A discussão passou a ser, então, quem teria cometido a falta maior.

Eu bem havia dito que antipatizara com o novo colega, Basso [bit.ly/cG250121], que já foi apelidado de Cabaço e para não ficar tão na vista agora chamamos de Mr. K. Pois me deram novo motivo para tanto. Quer dizer, ele tem dado reiterados motivos. Não que eu não possa mudar de opinião, estou aberto a ser contradito (é assim que se diz?), mas ele tem que ajudar também. A antipatia começa, claro, pela meritocracia que o levou à empresa, e continua com seu aspecto seboso e seu olhar baço, de quem não tem sonhos, apenas um fluxograma de vida, sua conversinha de cerca lourenço insistente e enfadonha e sua disposição para mostrar trabalho a qualquer custo, mesmo sem ter ideia do que fazer (espero ao menos que saiba em que área atua a empresa que seu tio é diretor geral).

Quem trouxe a notícia foi novamente Carnegie, o Arauto do Apocalipse. Nos contou ele que Robervals estava indignado pois ontem havia ido ao médico e por isso chegara mais tarde. Sentou na sua cadeira e estranhou de pronto: não estava na sua configuração, sequer era do mesmo modelo. Olhou ao redor: todo mundo agia normalmente - inclusive Mr. K., que estava com a sua cadeira. Cínico, pensou. Reparou melhor na cadeira que lhe restara, era a da antiga estagiária, a que possuía uma grande mancha no assento - e justo por isso sobrara para ela. Carnegie não deixou de reiterar seu ponto:

Eu bem disse que ele é um fresco! Esse burguês almofadinha dos infernos!

Falou em inferno, você entende, não, Arauto do Apocalipse - não perdeu a piada Goreti.

A discussão que citei no início do texto se deu, claro, por conta do roubo de bombons feito Robervals, no fim do ano. 

Macedo argumentou que Robervals cometera o pior delito, pois o bombom era um bem próprio e não algo cedido pela empresa para o período em que estávamos labutando:

Não tem como ser roubado naquilo que não é seu.

Me opus ao nobre colega, afinal, bombom come-se de uma vez, enquanto a cadeira passa-se o dia todo, o ano todo, quase a vida toda nela. 

Fosse ainda um Lindt - reforçou Goreti. 

Carnegie, que diz não gostar de chocolate, mesmo assim defendeu Robervals:

Ele é um cara legal, tem uma visão política coerente com a do proletariado.

Meirelles, sempre ela, trouxe toda sua experiência e sabedoria para dar o veridicto mais ponderado sobre a questão:

Basso é sobrinho do diretor, ponto. Ele só reitera o apelido que ganhou. Sem perdão para o Mr. K., portanto.

Impecável no argumento, fomos obrigados a concordar com ela.

Confesso que fiquei com dó de Robervals, não gostaria de estar no lugar dele, sou partidário do “minha cadeira minha vida”, mas que fazer se nosso colega é parente do chefe?


21 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



 

Basso, o colega com as melhores qualificações [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Um espectro ronda a empresa. Com o novo diretor geral, o diz-que-me-diz corre solto e ganha vulto a tese de que vai rolar um passaralho. Tem gente que se animou no Natal e se antes se dizia enforcado, agora começa a lamentar que Round Seis é só uma série de televisão.

Estávamos nessa tensão quando apareceu um funcionário novo no setor, o Basso. O alívio foi geral: se estavam contratando, o tal passaralho provavelmente não aconteceria, no máximo um ou outro demitido, digo, desligado para recolocação profissional.

Confesso que logo de cara não simpatizei com o novo colega. Não que isso seja novidade, eu não simpatizo com ninguém de fora da bancada - o que não quer dizer que eu antipatize, como é o caso de Basso. Acho que foi a foto do seu whatsapp: ele parece um desses falidos metidos a coach de criptomoedas: uma foto de estúdio, todo engomadinho em mangas de camisa azul, os braços cruzados, o sorriso forçado. Comparando com a realidade, percebe-se ainda camadas e camadas de filtro, quase uma plástica online.

Tudo ia muito bem com sua chegada até Carnegie, sempre muito diplomático quando não está indignado, conversar um pouco mais com o cidadão e trazer detalhes sobre o novo funcionário.

Aspirante a intelectual, metido a escritor, enfadonho e fresco: parece estar falando de mim, mas essa foi a definição inicial que ele deu de Basso. Até aí, tudo bem. Foi quando Carnegie nos conta que não se trata de um funcionário qualquer, e sim de um sobrinho do novo diretor geral. Porém, é claro que o parentesco não teve nenhuma relação com sua contratação: conseguiu a vaga estritamente pelas suas qualificações técnicas. Puro suco da meritocracia.

Essa informação trouxe o pânico no setor. Primeiro pensamento: o passaralho vai acontecer, visto que essa contratação não sustenta a tese antes aventada. Segundo pensamento: ele foi posto no setor adrede como P2, para analisar o trabalho de cada um, ver quem será ceifado, quem vai continuar. Ou seja, estamos todos crentes de que o passaralho virá, e não será pequeno.

No setor, ele já ganhou o apelido de Cabaço, graças ao Macedo, enquanto Carnegie agora tem sido chamado de Arauto do Apocalipse. O clima segue tenso, mas ao menos temos bom humor.


21 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Sem perspectivas de teletrabalho, Goreti parte para a ação direta [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Já contei alhures da mudança de diretor geral e o fatídico episódio da máquina de café - e esqueci de complementar: o liberal engomadinho que agora segura o “chicote da motivação” não deu conta da pressão dos funcionários e três dias depois estavam as máquinas funcionando normalmente. Nenhuma novidade efetiva desde então (parece que ele resolveu tirar férias neste fim/início de ano, apesar de estar recém começando na função), porém as fofocas já correm a mil. Elas vão de cortes no pessoal à contratação de novos funcionários, passando pelo diz-que-me-diz que a promessa de que o dia (um mísero dia na semana de cinco dias!) de teletrabalho não acontecerá tão cedo. 

Claro que ficamos indignados. Comentamos pelos cantos sobre nossa frustração com essa possibilidade, compartilhamos textos sobre o assunto, sendo o mais interessante o do Hamilton Carvalho, “O problema do home office” (https://www.poder360.com.br/opiniao/o-problema-com-o-home-office/); e xingamos muito no Bluesky (no Whatsapp estamos nos segurando um pouco, vai que Zuzu já esteja vendendo conversas em seus detalhes para quem estiver disposto a pagar?). Goreti, contudo, não é de ficar se queixando na cadeira e partiu para a ação direta.

Hoje ele estava com um comportamento estranho: chegou com uma grande mochila e de tempo em tempo verificava a hora e saía da sala. Nos olhamos curiosos, mas preferimos não falar nada num primeiro momento: estava agitado e parecia preocupado. Meia hora antes do horário de almoço começamos a sentir um apetitoso cheiro de tender - certamente saído do refeitório, que fica no meio do corredor. Foi então que Goreti tirou da mochila uma pequena panela de arroz e uma sacola de mercado e saiu novamente da sala. Dessa vez não me aguentei: fui atrás dele.

Fomos até o refeitório (que além de microondas é também servido de um forno elétrico), e eis que o nobre colega estava fazendo um tender, e agora iria preparar o arroz. Perguntei o que era aquilo, ao que me respondeu:

Já perco as manhãs de sábado fazendo faxina na casa, cansei de perder também as de domingo cozinhando pra semana. A partir de agora, vou economizar nas contas da casa usando a estrutura que a empresa nos oferece. Se não teremos teletrabalho, que lidem com isso. Já é muito que eu trouxe a lentilha pronta de casa.

Do bolso sacou um papel em que mostrava a economia que teria ao não usar sua cozinha. E da sacola tirou alface, tomate, cenoura, brócolis, uma tigela e vinagre. A alface e o tomate deixou de molho; o brócolis e a cenoura pôs na parte para fazer legumes no vapor da panela de arroz. E voltou ao trabalho.

Na hora da refeição, causou frenesi no refeitório seu banquete. Nós crescemos os olhos e perguntamos se ele não iria dividir com os colegas, ao menos os da bancada. Ao que o nobre colega, para além da humilhação que era seu cardápio, respondeu com sua habitual muquiranice argumentativa:

Não.

Foi só depois de insistirmos explicou que seria sua marmita dos dias seguintes. Mas nos deu a deixa:

Amanhã o forno estará liberado, é só trazer o frango ou a carne já temperada.

E ainda ofereceu a panela de arroz, desde que dividamos o custo do insumo e a lavemos.

Ninguém por enquanto decidiu entrar na ação direta iniciada por ele, mas tem gente pensando seriamente em aderir. Um pessoal, inclusive, tem conversado animadamente em usar o forno para fazer bolo ou pão, para o lanche da tarde. Se isso vai comover a diretoria a instaurar o teletrabalho, não sabemos, mas nosso expediente promete ser cheiroso.


13 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Robervals, o ladrão de bombons [por Sérgio S. ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Fim do merecido - ainda que curto - recesso de Natal, volto também a escrever, agora que retomei o ritmo de trabalho - ou quase. Felizmente não quis enfrentar praia lotada de paulistas e me poupei de uma virose (para comemorar o novo padrão de qualidade da Sabesp), de modo que posso falar das agruras desse período sem escatologias ou sofrimentos fisiológicos - apenas psicológicos e emocionais.

Pois bem, estava eu na calma de meu lar com o Brotinho, no domingo anterior ao Natal, quando recebo em meu whatsapp a mensagem de alguém que eu não fazia ideia de quem era. Essa pessoa, pelo visto, sabia disso e tratou de se apresentar logo na segunda frase: era Robervals, o novo funcionário do setor - chegado com as melhores indicações, há dois meses. Eu já havia distribuído meus votos de felizes festas a todos meus chegados - basicamente a bancada onde está minha baia -, de modo a não precisar receber mensagem dos mesmos e com isso não ter que rememorar que trabalho - mesmo que sejam meus amigos, eles me fazem lembrar das oito horas (e, como cantam os uruguaios do El Cuarteto de Nos: “Papito quiere una vida más relajada/Papá quiere quedarse en casa y no hacer nada”).

Robervals, portanto, começou estragando, mesmo que de leve, meu descanso - eu que ainda havia guardado duas folgas a que tinha direito ano passado para aumentar esse breve recesso. Contudo, mesmo que ela me lembrasse que tenho colegas de trabalho e que, dessarte, eu trabalho para garantir os lucros do patrão, houve algo de jocoso em tal mensagem. Ao menos para mim, porque o Robervals estava sofrendo.

Num dos dias de minha folga, a estagiária fez sua despedida - estava se formando e agora de esperança passava a ser o problema do país. Nisso, conforme me contou Robervals, deixou bombons para algumas pessoas. Eu fui uma das escolhidas - provavelmente porque lhe dava bons dias e sabia seu nome desde o início, ainda que não tenha conversado com ela, fora raras e sumaríssimas interlocuções acerca de questões laborais menores. 

Desconfio que ele não tenha sido uma dessas pessoas, pois se martirizava por ter pego aquilo que era meu de direito e eu nem sabia - nem ficaria sabendo, não fosse seu pedido de desculpas, dizendo que nunca tinha feito isso e estava arrependido. Me senti praticamente um padre em seu confessionário. Ao menos o pedido de desculpas foi em particular, se tivesse sido no grupo do trabalho faria eu me sentir como um pastor que humilha o fiel pecador na frente de todos (de preferência com transmissão pela tevê). Penso agora: talvez ele tenha recebido o seu, mas não era um bombom desses simples (sim, estagiário ganha pouco do trabalho, mas desconfio que a mesada dela seja boa), de modo que ficou com vontade de comer mais um e pegou os meus.

Enfim, eu estava indignado de ser perturbado do meu descanso por dois bombons que eu nem sabia que tinha quando Brotinho me deu uma explicação bastante plausível para o ato de meu colega:

Pensa: é vinte e dois de dezembro, daqui três dias é Natal. Papai Noel vai perguntar se ele foi um bom menino e ele, tendo cometido tão grave ato tão em cima da data, não teria tempo hábil para se redimir. Melhor foi se declarar culpado, esperar seu perdão e garantir o presente.

Achei que ela tinha razão e, por conta disso, decidi ignorar solenemente sua mensagem - como já era meu intuito inicial, mas agora com um quê de sadismo junto: que se entenda com Papai Noel e me deixe de fora da treta. Afinal, as duas vezes que usou meu computador, fez questão de alterar os ajustes da cadeira e do brilho da tela, me deixando bastante deslocado.

Ao voltar ao trabalho, contei o caso aos colegas - como diz irmã Makioka, “a fofoca é edificante, ela forja o caráter do coletivo”. Meirelles sugeriu que o apelidássemos de TV Colosso, e após rápida deliberação, aceitamos por unanimidade a proposta da nobre colega - por mais que entre nós haja pessoas que eram ainda muito impúberes na época em que o programa era transmitido.

Não sei se Robervals ficou sabendo de seu apelido. Voltamos há duas semanas e ele ainda não me devolveu os bombons, nem tocou no assunto. Nem eu. Na verdade, tenho evitado encontrá-lo: ainda me sinto constrangido com sua mensagem e prefiro, até segunda ordem, fingir que sequer a li (porque agora não posso mais dizer que não o conheço).


07 de janeiro de 2025