Vejo algo de um patético
respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e
policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo
registro do médico que desfila de branco (quando não com
estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do
crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de
corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético
respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão
Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão
(apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho
atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de
pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a
cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular,
massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais
militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela
calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem
atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns
caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos
policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes
regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos
seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não
estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por
comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no
calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os
ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos,
teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar
serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas
o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem:
estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham
que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus
negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso
processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se
escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam
como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes
assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis
"O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana",
publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não
acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda
não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem
anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada
européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e
corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos
exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu
à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê
(semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência).
O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que
veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro,
pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a
ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e
congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não
dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E
enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de
sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas
fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.
São Paulo, 06 de agosto de 2014