quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O discurso mais enfático da posse de Bolsonaro

Não acompanhei a posse do presidente da República, apenas li algumas repercussões na mídia e na minha bolha do Fakebook (e aqueles que usam em sua foto de perfil a frase de que Bolsonaro não é seu presidente, precisam aceitar que ele é, sim, nosso presidente, e atuar a partir desse dado de realidade).
O discurso (verbal) foi o esperado, sem nenhuma novidade. Se alguém imaginava qualquer movimento digno de estadista, de homem público, de mínimo de bom senso, que seja, por parte de Bolsonaro, precisa voltar dez casas e rever sua trajetória política, dos primórdios à transição, sem esquecer de rever suas estratégias de campanha. Se alguém ousou dizer que Bolsonaro, em seus discursos, "desce do palanque" e fala em "governar para todos" ou usou de ironia de maneira infeliz e mal utilizada, ou sofre de sérios problemas mentais, ou é um canalha a serviços dos patrões, temerosos de perder a teta estatal, como Josias de Souza.
O desejo de demonstração do triunfo da vontade fascista, com até meio milhão de pessoas, foi frustrada, e tiveram que se contentar com 115 mil espectadores - pouco mais da metade do número de pessoas que foram na posse de Lula, em 2003 (quer dizer, nas fotos que vi, esses 115 mil parecem iguais seus seguidores na internet, considerável parte não existe de verdade).
O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o discurso não verbal em sua foto subindo a rampa do Planalto (ainda mais quando comparada à de Lula): tapete vermelho para o futuro presidente e ao fundo, uma linha de canhões, e o povo muito longe - a depender do enquadro, sequer aparece. Representa um bom retrato de nossas elites - que não tiveram pudores em abraçar (e financiar) o fascista - para consigo próprias: se julgam (naturalmente) merecedoras de recepcão com tapete vermelho, talvez por saberem não terem dignidade para tanto. Representa também seu ideal de democracia sem povo, seja pela ideia de "democratura" positivista - levantado por Alexandre Andrada, no The Intercept Brasil [bit.ly/2VpSSz4] -, seja pelo desejo de nulidade da política, de modo a garantir o bom andamento dos negócios - como denunciava Debord, em 1967. Ordem e progresso: o povo quietinho em seu lugar, feito gado em sua baia; e as elites gerindo o Estado no estilo mais tosco de "balcão de negócios da burguesia", sem disfarces e com a delicadeza de uma manada de búfalos selvagens. Democracia de fachada, sem povo, para os ricos: é por o que os donos da Havan, Riachuelo, Habbibs, Drogaraia/Drogasil e que tais pagaram; é o ideal ascéptico de FHC e parte do tucanato, é o que a grande mídia defende - abertamente em seus editoriais, ou disfarçadamente em seus programas humorísticos -, é a proposta vencedora em uma imagem: o povo sob ameaça de tiro, mantido longe do poder.
Para consumo da massa bestializada, entretanto, o presidente populista - pretensamente popular - despido do povo é o discurso do outro como perigoso, da multidão como local que não cabe aos cidadãos de bem - só em situações especiais, "protegidos" pelos militares -, a vida pública como local a ser esvaziado em favor de quem entende, dos técnicos, dos tecnocratas despidos de ideologia (e de interesses pelo bem comum, mas isso não é dito), para quem produz poder trabalhar sem outras preocupações que seu desempenho, seus rendimentos e suas contas a pagar. É também a imagem de um certo salvador da pátria, que agirá, se preciso, sozinho em favor do povo, que pode seguir sua vida de gado tranquilamente - no máximo denunciando um professor aqui, um colega acola, de modo a permitir a plena harmonia social, livre de toda "ideologia", de todo pensamento que não seja a submissão cega ao poder.

01 de janeiro de 2019


sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O subtexto das medidas de segurança da posse de Bolsonaro

As notícias sobre as medidas para a segurança do futuro presidente da república, da compra de carros blindados ao "esquema inédito de segurança" na posse, incluído aí sua hesitação sobre desfilar em carro aberto, pode parecer, a leitores apressados ou ingênuos, fruto de sua falta de conexão com a realidade, visão excessiva acerca de si próprio (vulgo ego com elefantíase), gastos perdulários com o dinheiro público. Ocorre que todo esse esquema de segurança e seu anúncio pela grande mídia - sem um pingo de crítica, que seja saber quanto tudo isso vai a custar a mais aos brasileiros, visto que se trata de um governo que promete cortar tudo de todos (menos dos que tem dinheiro, dos membros do judiciário e dos militares e suas viúvas e órfãs eternas), fazer o "desmanche o Estado" (a imagem que me veio com a fala do vice presidente eleito é a de desmanche de carros roubados) - nada tem de inocente: trata-se da construção da narrativa de criminalização da esquerda e de opositores ao novo governo - na verdade, um elemento a mais nessa construção.
É o óbvio ululante, mas relembro que foi o próprio Bolsonaro - e ninguém mais - a proferir discursos de ódio e obscenidades como matar 30 mil, ser favorável à tortura, metralhar a petralhada. Vale recordar também que não foi o partido de Bolsonaro que teve dois de seus mais importantes quadros assassinados um ano antes da eleição. Também não foi do partido de Bolsonaro nenhuma vereadora ascendente a assassinada (o máximo que temos é integrantes da futura tropa de choque bolsonarista ameaçando servidora, se ela denunciasse a tentativa de estupro sofrida). Não foi Bolsonaro quem sofreu um ataque a tiros - ataque orquestrado por homens de bem e de bens - durante a pré-campanha de 2018. O que Bolsonaro sofreu foi uma suspeitíssima - mas muito bem vinda, no momento ideal para o então candidato - facada, que não o pôs em risco, mas permitiu que ele fugisse dos debates sem ficar com a devida fama de covardão. Porém, assim como a facada e seu autor não mereceram maiores investigações - a prisão do suspeito e a construção da narrativa como ex-filiado ao Psol bastaram -, os tiros na caravana de Lula, os motivos dos assassinatos de Mariele, Toninho ou Celso Daniel, tampouco merecem investigação - sequer merecem ser lembrados, pois a esquerda não pode ser vítima, apenas carrasca suspeita-portanto-culpada. Tiros na caravana? Foi alguém do próprio Lula quem atirou, para se fazer de vítima. Celso Daniel foi morto por ser corrupto, Mariele por ser casada com traficante. É importante à mídia e ao status quo construir uma narrativa perfeitamente coesa para dar a suas fantasias o máximo de aparência de realidade.
O esquema de segurança de Bolsonaro, para a posse e depois é um elemento a mais nessa grande fake news, nesse gigante fake world, construído por Globo, Folha, Record e quetais: no subtexto está sendo dito - dito, não, gritado - que o futuro presidente está em risco de um ataque iminente de algum esquerdista. Não apenas porque ele sofreu um (fake) atentado à faca, mas principalmente porque a esquerda é violenta naturalmente: vide a Rússia soviétiva, Cuba, Venezuela, Cesare Batisti, ou os atos menores, como obrigar crianças a aprender história; e esqueça a propria história, as milícias fascistas, as empresas de segurança especializadas em dissolução de greves na virada do século XIX para o XX nos EUA, os grupos de skinheads que atacam gays, pobres e esquerdistas; as empresas de segurança privada e os milicianos do Rio de Janeiro, a maioria dos atentados terroristas nos EUA, ou mesmo na Argentina: notícias desses grupos devem ser noticiados uma vez, se muito, para passar a impressão de imparcialidade da mídia, e esquecidos a seguir, soterrados pela repetição da violência e dos crimes da esquerda (que não é santa, antes que alguém queira me refutar com base nesse raciocínio precário, 0-1).
O esquema de segurança para a posse não serve para proteger ninguém, pelo contrário, serve para justificar num futuro breve um novo grau de arbitrariedades e violências (estatais, paraestatais-midiáticas e paraestatais-milicianas) contra as populações de sempre (pretos pobres periféricos) e todos aqueles que ousarem questionar o novo governo, como "nos bons tempos" da ditadura, digo, do movimento de 64, em que só apanhavam, eram torturados e assassinados "quem pedia". Fora isso, a harmonia social resplandecia, com cada um ocupando seu lugar sem discutir ou questionar.


28 de dezembro de 2018