São
Paulo, mon amour, pensei quando o ônibus chegou no terminal
Tietê. Acho que já me declarei à cidade em crônica anterior. Essa
sensação aumenta ainda mais ao voltar de Campinas – cidade que
sinto como uma prisão, e que por dez anos abstrai para suportá-la.
Como toda prisão – desconfio –, fiz meus amigos de cela, e este
sábado na “Princesa do Oeste” revi duas das pessoas mais
queridas que tenho na cidade. Os lugares não se encontram,
constroem-se, disse Mia Couto. Concordo em partes: os lugares são
construídos do nada, mas de uma configuração prévia que autoriza
certas construções e limita outras. Para mim, Campinas se construiu
como Ercília, do livro de Ítalo Calvino. Os fios das relações
construindo as ruas pelas quais eu transitava e as paredes da casa
que me abrigava. Porém, conforme muitos dos meus amigos foram
levantando acampamento de lá, ela foi ficando mais limitada do que
já era – minha Ercília exigia reconstrução diária dos seus
laços. No breve trajeto pelo Cambuí e centro, até chegar na
rodoviária, onze horas da noite, uma cidade que se nega a si como
tal. É sábado mesmo? Um milhão de habitantes? Pato Branco, no seu
interiorano hábito das pessoas irem para a avenida principal curtir
a noite sem opções, se concentrando nos postos de gasolina, ainda
lembra que é uma cidade, quase (quase!) dá para fazer um paralelo
com a rua Augusta, em São Paulo. E Campinas? Pode ser
desconhecimento meu, mas não sei de rua parecida. Na praça do
Centro de Convivência Cultural, jovens de classe média se rebelam
conformísticamente bebendo em trajes darks
sob a vigilância de câmeras de segurança e da base da PM –
podiam chamar aquela de base infanto-juvenil da PM. Na sua ânsia de
progresso, Campinas deixou o que era para não se tornar nada – e
nisso Pato Branco, deitando abaixo construções com alguma história
para construção de torres classe média, acompanha a cidade
paulista. Uma pena. Se tivesse se mantido como cidade-museu, estilo
as cidades histórias de Minas, creio que hoje Campinas seria uma
cidade mais interessante, quem sabe até convidativa – certamente
mais bonita. (Pato Branco não chegaria a isso). Talvez minhas
reclamações sobre Campinas e Pato Branco (na primeira vivi dez, na
segunda, dezessete anos) sejam as mesmas que moradores antigos
dirigem contra São Paulo, que diante das possibilidades abertas
parece ter sempre optado pela pior (o site “Quando a cidade era
mais gentil” dá uma boa mostra disso [j.mp/16cKaah]), até se
tornar no mostrengo cosmopolita atual – que graças a skatistas,
putas, alguma classe-média com boa vontade, e alguns poucos outros,
resiste em ser um deserto de asfalto e concreto. É quase a mesma
amargura de Trevisan com sua Curitiba perdida. No meio da tarde,
enquanto esperava por um dos amigos, na praça do Centro de
Convivência, um casal na minha frente namorava como se vivesse em
cidade pequena, como se estivesse nas férias: calmamente, sem
afobação, carícias entrecortadas de silêncio e olhares. Campinas
merecia isso e não ruas em que carros passam apressados enquanto
tiozões desfilam Ferraris (que eu imaginei de início ser um Miura;
semana passada a confusão se deu com um Porshe placa preta na
Augusta). Mas ela optou por ser um local de passagem, que demarca sua
forte segregação social com avenidas túneis e rodovias. Chego em
São Paulo a tempo de pegar o último metrô. É sábado, não está
vazio, mas está silencioso. Num canto um homem parece voltar do
trabalho, cabeça baixa, parece cansado. Ao seu lado, um casal gay
tira fotos: um negro, outro branco e loiro, cada um com seu moicano.
Um homem já começando a ficar grisalho, cabelo e barbas compridos,
camisa verde-musgo, meio estilo hippie-limpo, tem o olhar perdido –
fosse Campinas e seria o estereótipo de quem mora na Vila São João
e toca numa banda de músicas folclóricas. Um rapaz com dois brincos
(e provavelmente alguma tatuagem que não enxergo) mexe no celular.
Um homem gordo e calvo tem um livro na mão e mexe no celular. Também
mexe no celular uma moça com uma grande tatuagem no braço, que não
consigo identificar. Uma mulher de vestido colorido em tom pastel –
branco preto vermelho –, óculos, grandes orelhas e forte
estrabismo olha irriquieta para os lados, mais ou menos como deve
estar fazendo o branquelo alto magricelo que emana cheiro de café –
além dos amigos, há um café e o preço da paçoquinha diet que
considero pontos positivos de Campinas – e que faz anotações
sobre as pessoas do vagão em um caderno. Embaixo da teletela do
metrô, que a essa hora passa propaganda institucional, um outro
rapaz gordo dorme esparramado – ele usa bermuda jeans. Perto dele,
um casal descolado, uma bela morena (que mexe no celular) e um rapaz
que me lembra quase um “Sérgio Malando cool” pelo estilo do boné
– talvez eu esteja influenciado pela tenebrosa propaganda de
refrigerante com o referido artista nas paredes do trem. Atrás desse
casal, um outro – ao menos um par –, ele com roupa mais justa,
ela, com roupa super curta. Dois homens conversam, tem-se a impressão
que a noite caminha para o final para ambos, apenas esperando chegar
em casa – diferentemente de quatro amigas, prontas para a balada.
Trechos de Arcade Fire, François Breut e Interpol se revezam em
minha mente. Me dou conta que a festa que fui em Campinas não tinha
música – e não fez falta. Por um mês não quero sushi. Travestis
fazem ponto perto do circuito de rua do Anhembi. Lembro com saudades
dos bons tempos da categoria, em meados dos anos 90, Gugelmin,
Moreno, Gil de Ferran, Zanardi, Montoya, Vasser – pois é, eu gosto
de automobilismo. Sinto mais receio de andar à noite por Campinas do
que no centro de São Paulo – nesta me sinto em casa e não tem
porque temê-la, apesar de saber que sempre há riscos. Por falar em
casa, ao chegar, vejo na internet que em Fukuoka faz sol.
São
Paulo, 05 de maio de 2013.
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