Independente de quem
vença a votação de domingo sobre o golpe em curso, pode-se dizer
que de alguma forma quem ganha é o Brasil. Uma vitória de Pirro,
mas necessária para boa parte da população. Nosso Estado
Democrático de Direito não é nem nunca foi de direito, sequer
democrático; a cordialidade brasileira não resiste à primeira
contraposição, nossa burguesia defensora dos ideais liberais não
se sustenta sem Estado e os movimentos sociais voltam a se dar conta
de que ou se mexem, ou perdem as migalhas que conquistaram com a
Constituição de 1988. Dar-se conta disso pode ser de suma
importância para os próximos anos. A questão é: parte da
população, os ocupantes dos andares de cima, detentores de títulos
pelas melhores universidades e cargos nos meandros do Estado, com
alguma possibilidade de voz, estão dispostos a assumir nosso (meu,
seu, deles, nosso) fracasso? Tenho minhas dúvidas, principalmente em
caso de derrota do golpe - e não falo dos 10% de fascistas e 10% de
ingênuos manipuláveis, falo dos que têm se posicionado em defesa
da democracia.
Há uma série de
falsas idéias que se utilizam e mostram o quão não estão
enxergando a situação do país - e mesmo o quanto desconhecem
princípios democráticos. Uma das mais correntes é que o
impeachment desrespeitaria o voto de 54 milhões de brasileiros. Nada
mais falso: o impeachment é um desrespeito ao voto de 105 milhões
de brasileiros! Afinal, a democracia não é para quem vence, é
para todos. Ok, podemos descontar uns 20% de eleitores do Aécio, declaradamente golpistas e saudosos do pau-de-arara (para os outros, claro),
ainda assim, são 84 milhões de eleitores! Falar que o desrespeito é
apenas aos eleitores de Dilma é da mesma pobreza que dizer que "a
culpa não é minha, eu votei no Aécio": a culpa é de todos -
inclusive dos que se abstêm de votar, num gesto inócuo de não
legitimar nosso sistema falido, como este escriba, que se orgulha de
nunca ter comparecido à farsa da democracia brasileira -, a
responsabilidade pelos políticos eleitos é de absolutamente todos,
e se é legítimo se opôr ao executivo de turno em matérias que
sentem seriam lesivas aos seus interesses - tanto particulares quanto
interesses de uma sociedade melhor para todos -, simplesmente
impossibilitar o executivo democraticamente eleito de governar é uma
temeridade (com o perdão do trocadilho) para com o país - como temos visto na atual crise
econômica, em quem paga o pato, claro, são os mais pobres, que
agora são chamados também a pagar o foie-gras dos patrões.
Outro equívoco é o
#NãoVaiTerGolpe. O golpe está em curso faz mais de um mês, capenga
por conta da sagacidade-ainda-que-tardia de Lula, ao voltar ao executivo para
articular o governo de sua sucessora e se pôr à disposição de uma
justiça minimamente imparcial e justa (excluído Gilmar Mendes) e
não de um justiceiro de província. Na avenida Paulista, o robô dos
Changerman transmutado em pato de borracha plagiado é a versão
pós-moderna do Cavalo de Tróia, com as portas da cidade abertas
pelo vice-presidente (o mesmo que negociou lei retroativa em favor de
FHC em troca de sua eleição para a presidência da Câmara, um homem probo, que age pelos interesses do país). No
pato de Tróia do Skaf, o golpe ao nosso precário estado social - em parte já
encabeçado por Dilma. O que estamos tentando evitar é o golpe de se
consumar: #EstáTendoGolpe #NãoVaiVingar, seria o mais preciso em se
falar.
Para não me alongar,
trato apenas de mais uma falácia dos democratas legalistas (grupo
que tem meu total apoio, apesar destas críticas, deixo claro): dizer
que defendem a democracia é demonstração de miopia grave. O que
estamos defendendo é possibilidade de democracia - política e
social. Eleições formais a cada quatro anos não implicam em
uma democracia, querem dizer apenas que há uma farsa a cada quatro
anos. No caso brasileiro, como temos visto, não conseguindo se valer
de golpes brancos nas últimas quatro eleições, como em 1989, 1994
e 1998, nosso sistema político-econômico simplesmente atropela a Constituição, as urnas e a vontade popular (que, posto em aporia, preferiu votar em Dilma). Que democracia é essa
em que o vencedor é dado de antemão, sob o risco de não ter a
eleição validada, ou melhor, de não ter o governo eleito autorizado a governar?
Convém recordar que em 2002, para poder assumir e governar, Lula já
havia capitulado a esse mesmo setor que em 2014 rejeitou a
capitulação humilhante de Dilma.
Exemplifico meus questionamentos sem sair do ninho tucano, São Paulo: que democracia é essa que só
um lado tem direito a protestar? Que moralidade e eficiência é essa
de um governador que rouba mas não faz e não tem problema alguma
nisso? Que Estado de Direito é esse em que a Polícia Militar é
transformada em milícia do governador, atacando movimentos sociais,
invadindo sedes de sindicatos e torcidas organizadas que se mobilizam
contra o golpe, que prende pré-adolescentes que reivindicam direitos
constitucionais como educação, que bate e planta provas contra
jovens que reivindicam o direito à cidade, que protege um pato de
borracha e é linha de frente de manifestantes pró-golpe, como se
viu na PUC-SP? Pior: que Estado de Direito é esse em que o governador do
Estado legitima execuções sumárias extra-judiciais por parte de
seus subordinados (isso depois de ter nos anais do Estado uma chacina
covarde de 111 pessoas indefesas em uma tarde)? Diante de Alckmin e
Alexandre de Moraes, delegado Fleury seria um reles amador. Como diz
muitas letras de rap: quer intervenção militar? Vai morar na
favela.
Respondo: esse é o
Estado Democrático de Direito que vale para a maioria da população:
seu voto é uma farsa, suas reivindicações são baderna, suas
organizações são criminosas e terroristas, suas vidas, totalmente descartáveis. O que o golpe em curso mostra a nós, classe média
branca e titulada, é que vivemos na Terra do Nunca: ainda que não
ignorantes, não nos demos conta da real profundidade do Brasil da
maioria da população, da precariedade de nosso Estado, de nossa sociedade, de nossa sociabilidade. Também nos sinaliza para aonde devemos rumar: sem uma reforma
urgente dos meios de comunicação, seguida de reforma política e de
aprofundamento da democracia, o que teremos serão eleições formais
a cada quatro anos para decidir quem vai fingir que governa o país. Enquanto isso, os donos do pato riem e lucram.
15 de março de 2016.
O Batman (e não o Robin Hood) junto ao Skaf é simbólico. |
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