Para começar esta análise, parto de um fato objetivo: vivemos em democracia liberal burguesa, marcada por eleições periódicas livres (teoricamente, bem teoricamente), onde sai vencedor quem tem o maior número de votos e leva o executivo (e consegue garantir o legislativo, mas isso dá para resolver depois das eleições).
Assim, em 2020, ganharam os partidos ultra-fisiológicos, do (mal) chamado "centrão", partidos que são sempre aliados do governo de turno: mais uma vez mostraram que sabem se apropriar das verbas federais para fazer valer seus interesses em suas praças, desta vez com a novidade de fazerem-no sem se atrelar ao governo; e que sabem utilizar a máquina estadual para tratorar dissidências, como é o caso do Paraná, governado pelo filho do apresentador Ratinho.
A extrema-direita só pode ser considerada como uma das perdedoras do pleito municipal se entrarmos na velha ladainha dos analistas da grande mídia (em especial durante os anos petistas), de querer comparar as eleições municipais às eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Nada mais equivocado: ainda que tenham influência da política federal e estadual - e seja de grande influência nas eleições legislativas de dali dois anos -, o pleito municipal tem sua dinâmica própria. Não cabe comparar 2020 com 2018, e sim com 2016. PSL, PSC, PRTB, Republicanos e Novo elegeram 467 prefeitos em 2020, sendo Vitória a única capital, contra 234 em 2016. Se formos comparar ao PT do início do século, o Partido de Lula tinha elegido 200 prefeitos em 2000 (é certo que dentre eles estava São Paulo e outras 5 capitais) e foi para 411 em 2004 (sendo 9 capitais). O tal fogo de palha que muitos vêem no resultado fraco da extrema direita parece ser uma tendência porém não pode ser comprovado com os resultados de 2020: a extrema direita não tem força e penetração como o PT com o qual comparei, o discurso de ódio e as fake news tem encontrado seus limites, mas isso não quer dizer que não possam reencontrar o caminho.
O PSDB, transformado em Partido à Serviço de Dória e seu Balcão de negócios, em aliança com o DEM, garante força no tabuleiro para 2022. Preparando o discurso para daqui 2 anos, o atual governador engole seu discurso fascistóide e agora fala contra o ódio. A estratégia do detentores do capital já se mostra clara e será a mesma de 2018: apresentar seu candidato como o centro moderado, contra extremismos - e agora contra aventureiros também, como foi o discurso de campanha de Covas contra Boulos. (Tenho realmente dúvidas se o prefeito disputará o governo do estado daqui dois anos: não por qualquer coerência à sua promessa de campanha, mas porque se mostrou fraco demais para uma disputa majoritária - que o diga o apelo à máquina do município, conforme denúncia registrada em vídeo -, e além da rejeição que pode adquirir ao deixar a prefeitura, pode acrescentar pouco com seu estilo). É um discurso que deu certo por um tempo, mas tenho dúvidas se vai vingar novamente: ainda que a tendência seja essa volta ao centro, a crise econômica-social que se avizinha pode embaralhar novamente o cenário, como foi a crise econômica-política em 2018.
As esquerdas, por seu turno, são as grandes perdedoras. Não adianta retomar o discurso de Freixo em 2016 e falar em vitória moral: o que conta acima de tudo numa eleição, aos partidos que entram em disputas visando a vitória e não candidaturas de denúncia, é vencer nas urnas. Há outros elementos a serem considerados, mas em termos factuais, o ponto é o quanto ganhou.
O PCdoB bem que tentou em Porto Alegre, mas no fim, se tornou um partido maranhense e baiano (respectivamente 22 e 16 prefeitos, de um total de 46). O PDT se manteve com seus trezentos e poucos, com destaque aos 68 do Ceará, mostrando que o partido não tem projeção nacional para os anseios de Ciro. O PSB também perdeu prefeitos: é um partido sem base e sem grande projeção, tentou em São Paulo manter o discurso ambíguo que vinha da época de Eduardo Campos e não teve sucesso; mancha sua reputação quando João Campos abandona qualquer pudor e adere às piores práticas consagradas pelo gabinete do ódio, na disputa por Recife.
O PT segue caindo, fruto de anos de perseguição midiática-judiciária, que fez com que muitos de seus quadros mudassem para siglas do mesmo campo, como forma de contornar o macarthismo que perseguiu o partido. Ainda é um partido com considerável base militante, espalhada pelo país e que ao menos em São Paulo mostrou vontade de voltar a atuar - a escolha de Tatto, volto a dizer, foi acertadíssima. As três grandes questões para o PT são: se livrar da Luladependência, algo por ora fora do horizonte, conseguir atualizar seus quadros e suas formas de mobilização, aceitar que mesmo sendo o principal e mais bem estruturado partido de esquerda, pode ser mais sensato ceder o protagonismo nas próximas eleições (algo como fez Cristina Kirchner na Argentina). O PSOL é um dos exemplos em quem o PT deve se inspirar: abrindo o partido para movimentos sociais, sabendo usar as redes sociais, e garantindo militância nas ruas e não de gabinete, o partido de Boulos e Erundina retoma a velha forma do PT de fazer política, baseado em trabalho de base, com outros objetivos que não o mero resultado eleitoral (comentarei de Boulos em outro texto). É um alento, porém tem limitações graves, e é nesse ponto talvez por onde o PT possa utilizar da sua experiência e sua capilaridade para avançar: conforme apontou Alceu Castilho, editor do site De Olho nos Ruralistas, em comentário nas redes sociais, essa renovação política nas câmaras municipais é um fenômeno urbano dos grandes centros: no Brasil profundo, a tendência é manutenção daquela política que nada deixa a desejar à república velha: conservadora, violenta, sem espaço para qualquer respiro (não que as mesmas práticas não sejam encontradas nos grandes centros, vide os eleitos para as câmaras de São Paulo e Rio de Janeiro).
Diante desse quadro, pode-se dizer que a tendência não é das piores para a esquerda e para o campo progressista como um todo. A questão essencial é não se limitar à política parlamentar, disputar o discurso com o que a mídia chama de 'centro' (uma extrema direita que bebe água Perrier e segue a cartilha Globo News de análise), o que implica se reapropriar das ruas, se apropriar das redes sociais e da internet, recomeçar e reconstruir o trabalho de base - em suma, religitimar a política e os partidos. É trabalhoso, mas é como se faz política para além dos conchavos de gabinete - Boulos é prova disso.
29 de novembro de 2020