quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Sanspaieux, a professora com um sonho da casa própria em SP [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Vida de professor não é fácil. Brotinho tem uma amiga, a Sanspaieux, que é professora da rede pública há vários anos. Dava aula no estado, prestou concurso da prefeitura, prometendo a si própria que se passasse iria comprar um apartamento e sair do aluguel. 

Pois passou - e foi fazer as contas para a casa própria. Descobriu que com o novo emprego até conseguiria pagar as prestações, porém não conseguiria mobiliá-lo - e sabemos que nos apartamentos de hoje em dia, se não for móvel sob medida, você não cabe na casa, simples assim. Solução: manter os dois empregos por um ano. Como era pouco tempo, decidiu encarar essa aventura.

Pois surgiu um novo problema: uma escola na zona leste, a outra no extremo sul: não tinha como chegar a tempo no segundo emprego se não tivesse carro. Decidiu, então, comprar um carro. Comprou um celtinha usado, inspirado num deputado que - esperamos - será o novo prefeito de São Paulo. 

Claro, que isso não poderia acarretar um novo contratempo: para pagar o carro e mobiliar a casa, precisaria ficar dois anos - e não mais apenas um - com dois empregos. Quem aguenta um, aguenta dois, pensou, e seguiu firme na sua promessa de casa própria.

Como já teria o carro, resolveu comprar um apartamento em algum lugar bem localizado, na região central, perto das coisas que ela gosta de fazer, e não perto do emprego. 

Tudo ia bem para Sanspaieux - salvo sua saúde física e mental -, saindo de casa às seis e meia da manhã, voltando sete da noite, com reunião às sete e meia duas vezes por semana. Isso até seu celtinha deixá-la na mão. E não foi de uma vez. Num dia, furou o pneu. Foi atrás de borracheiro e chegou em casa quase dez da noite. Dois dias depois, o carro pifou de vez. Chamou o mecânico, que avisou que iria precisar de no mínimo sete dias úteis para consertar. Nos relata ela seu diálogo epifânico:

Mas, moço, eu preciso do carro para trabalhar!

Você trabalha com o que?

Sou professora.

Ah, achei que fosse Uber. Vou pôr o seu como semi-prioridade, mas antes de quatro dias não fica pronto.

Pelas suas contas, como ela mora longe dos dois trabalhos, até poderia ir de transporte público ao primeiro emprego, saindo uma hora antes, depois teria que pagar uber para o segundo emprego, e na volta, novamente transporte público, chegando cerca de nove da noite em casa. Inviável, não só pela questão do tempo, como pelo gasto com uber, que comeria o que ela ganharia no mesmo período com um dos empregos e mais um pouco. 

A solução foi dada pela conversa com o mecânico: alugar um carro e fazer Uber nos trajetos e mais uma horinha depois do expediente. Assim o fez. Problema: se com isso ela quase conseguiu fechar o aluguel do carro, para pagar o conserto do seu celtinha vai precisar fazer mais um tempo de Uber, para complementar renda - mesmo odiando dirigir, ainda mais em Éssepê, não sendo alguém que se anima muito em conversar com estranhos (ainda mais essa galera que fala merda pelos cotovelos, já xingaram professores umas três vezes, nos conta, quase em lágrimas), e estando cansada de tanto trabalhar. 

Ela tenta se conformar: é só por dois meses. Sanspaieux merecia ser entrevistada em qualquer um desses podcast de coach, mesmo sem ser uma, para ensinar resiliência e pensamento positivo - ou auto-engano, como preferir. Ao menos ela tem sua casa própria!


01 de agosto de 2024.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

São Luís: musical e dançante

O hostel em que nos hospedamos fica em um antigo casarão no centro histórico de São Luis. Nosso quarto dá de frente para a rua e as janelas não possuem vidros - logo, o isolamento acústico é precário. Como dito em crônica anterior, isso não foi exatamente um problema, visto que a região tem bem pouco movimento. Na terça, voltamos no início da noite e me irrito com a cantoria gospel a que somos submetidos. Cerca de quarenta minutos depois de iniciado ela se cessa, mas não tarda muito escutamos a cantoria de Nossa Senhora do Carmo - desconfio que fosse alguma procissão, já que é o dia da santa. Ela é mais breve, mas tão logo se encerra entra um batuque. Percebemos que está próximo e vamos em busca: trata-se, na verdade, de uma roda de tambor de crioula, que está acontecendo na Fonte do Ribeirão. Ficamos um tempo a assistir, e mais pessoas se achegam para o tambor - já tarde da noite o tambor terá terminado, mas um batuque ameno segue. 

Não parece que essa musicalidade toda seja uma excepcionalidade no dia a dia ludovicense, antes seu quotidiano.

No domingo da crônica anterior, ao sair para conhecer o Reviver havíamos trombado com um palco onde se apresentava o Boi da Madre Deus, o primeiro a ser registrado, mais de cem anos atrás, ainda pela manhã. À tarde, numa praça nos deparamos com um grupo dançando cacuriá - isso depois de passarmos por tambores sendo aquecidos numa fogueira para o tambor de crioula a que iríamos, sem querer também, assistir a seguir. No mercado das Tulhas, onde degustamos várias cachaças de graça - deu a impressão que o dono tinha a loja com o intuito de bater papo, não de vender -, uma roda de samba; na escadaria que paramos para tomar sorvete, um DJ tocava reggae - e sequer era a escadaria do reggae, que evitamos por estar apinhada de gente, e acredito que a minoria fosse turista - e fora do Reviver nos deparamos com outra roda de samba.

A primeira impressão, do sábado à noite, vai se desfazendo rapidamente - e eu chego a ter vergonha de ter tido conclusões tão precipitadas: São Luís se mostra uma cidade viva e pulsante, mais que isso, musical e dançante, que sabe conciliar seu dia a dia com o turismo, sem se render a este.



PS: e olha que não estávamos junto com o casal de amigas com quem viajamos quando elas fora até a periferia da cidade, conhecer a casa de uma das lendas do reggae local - a história que elas contaram vale por duas crônicas!



19 de julho de 2024.