terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Os imbróglios do café na empresa [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

 Trocaram o diretor geral da empresa, e ele chegou querendo mostrar serviço - e seu jeito de trabalhar.

Por muito tempo, café era uma briga aqui no setor, com uma cafeteira elétrica para quinze xícaras (e cinquenta pessoas) e o pó por nossa conta. A primeira disputa era qual café comprar: se extra-forte, que é mais barato, ou o tradicional mais barato, que é quase um extra-forte. A segunda disputa era quem faria: todo mundo queria, porém só quando o sono batia forte que alguém se habilitava a pegar o bule, ir até o banheiro encher de água, pôr o pó, derramar a água, ligar a cafeteira. Terceira disputa: com capacidade para quinze xícaras pequenas, quando muito o café dava para seis pessoas - e o clima pesava quando quem tinha feito o café acabava tendo que fazer algo e não voltava a tempo para encher sua caneca.

Isso foi resolvido com o antigo diretor, que soltou uma circular dizendo “Se é para o bem da empresa e felicidade geral dos funcionários, diga que teremos máquinas de café em cada setor”. Na verdade não foi bem assim, foi só um aviso de que haveria máquinas nos setores, dessas de expresso automático, que moem os grãos na hora. Comemoração, alegria: café expresso e em grãos, sem galhos, tocos, folhas e sabe-se lá o que mais; sem mais disputas de quem vai fazer, quem vai conseguir tomar. Café de melhor qualidade e de graça - e para todos.

Isso era o que imaginávamos, até chegarem as máquinas e os grãos. Que raios de grãos eram aqueles? Onde tinham conseguido aquilo? Era café mesmo? Esses foram alguns dos questionamentos que nos fizemos.

Houve quem, ainda assim, aprovou a mudança - ou ao menos bebia aquele café. Não foi meu caso - e de meus colegas de bancada. Mantivemos um mínimo de dignidade, temos ainda um resto de auto-estima, apesar do estômago calejado por anos de bandejão nos permita encarar pedras na carne moída sem sentir, caso não enrosque no dente. Achamos um restaurante aqui do lado com café razoável e barato e viramos clientes assíduos - apesar dos olhares feios do chefe. Houve quem preferisse trazer sua própria máquina (de cápsula), sendo um deles o próprio chefe do setor.

Uma das primeiras atitudes que o novo diretor geral tomou foi com relação ao café. Sob a desculpa de que no recesso o consumo diminui, porque trabalhamos com metade da equipe, resolveu interromper o contrato com a empresa das máquinas. Por esse período? Não! Por tempo indeterminado. Bom seria que o recesso também fosse por tempo indeterminado. O argumento é que “a medida visa otimizar os recursos e tornar a empresa mais eficiente”. Se o antigo diretor quis de início parecer simpático, esse foi pelo caminho oposto - a ver se vai se contradizer nessa primeira impressão, como o antigo; infelizmente, creio que será coerente.

Esqueci de comentar no início: uma das características do café na cafeteira é que muitos interrompiam seu trabalho para esperar o café ficar pronto, e conversavam enquanto isso - não raro muito tempo depois de já terem se servido -; enquanto a máquina automática fez com que quem a usava o fizesse no automático também: vai, clica no café, tira o copo com aquela gororoba preta e volta para sua baia.

Enquanto uma empresa de aplicativos consegue prender os funcionários nas suas cadeiras com robô que entrega o café na mesa, aqui a eficiência consiste em economizar em café ruim e dar desculpa para funcionários baterem papo sem culpa. Eu não reclamo, mas não pretendo deixar de beber o café do restaurante ao lado - Macedo diz que seguirá me acompanhando -, com cara feia do chefe e tudo o mais.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

renanrenan, o médico e o artista

Em outubro de 2011 pela primeira vez eu subia em um palco: era para apresentar uma palestra em um congresso de medicina sobre cuidados humanizados (eu fui falar sobre máscaras sociais, como filósofo, só para constar), em São Caetano do Sul [bit.ly/cG111011b]. 

Falar para mais de duzentas pessoas deu um nervoso, porém foi tranquilo. Complicado mesmo foi o depois: com minha enorme falta de jeito no trato social (então eu não tinha um diagnóstico de autismo, achava que era só fruto da minha timidez excessiva), me sentindo muito deslocado, esperava uma brecha para me despedir das organizadoras e organizadores e ir embora.

Nesse ínterim, se aproximou de mim um estudante recifense. Pediu o texto que eu havia apresentado, emendou uma conversa, foi me aproximando de outros alunos, e fui me sentindo acolhido - ao cabo, terminei dormindo no diretório acadêmico da faculdade, já que eu tinha compromisso em São Paulo no dia seguinte (na época eu morava em Campinas).

Treze anos depois, eu com meu mestrado concluído, ele médico (de saúde da família, paliativista e de saúde LGBT), mudamos de lado. Agora é ele no palco, eu na plateia. Contudo, diferente de mim, não é sua primeira vez e nem se mostra acanhado, pelo contrário: se expande junto com a banda que o acompanha, Os Amanticidas. É Renan, agora renanrenan, em show da turnê do lançamento do disco conjunto, Eu te conto tudo, no Sesc Vila Mariana.

Já havia escutado o disco, gostado muito, com destaque para as quatro primeiras músicas - “Bisha”, “Arrasta asa”, “O sonho”, “Limbo” -, uma sequência diversa e arrebatadora. Ao longo de dez faixas renanrenan e Os Amanticidas se mostram bastante versáteis, passando por vários estilos da música popular brasileira. 

Se o disco é bom, o show - apesar de não ter todos os instrumentos do estúdio - é ainda melhor! Presença de palco, simpatia da banda, e uma interpretação poderosa de renanrenan. Sem falar em um público animado - os ingressos se esgotaram em menos de quarenta minutos.

Enquanto esperava, depois do show, para dar um abraço em Renan, fiquei a me questionar o porquê de seu nome artístico. 

Um duplo de si, onde pode caber suas múltiplas e talentosas facetas? O inverso de si,  daquilo que se esperava dele em outros tempos, tempos de menino? Sua própria sombra trazida com o nome? Ou seu nome próprio trazido por o que muito tempo foi uma sombra? O médico e o monstro: ao mesmo tempo que tem a profissão de maior prestígio na nossa sociedade, acintosamente se afirma nas suas heterodoxias de gênero e sexualidade com leveza e alegria (neste nosso tempo de reacionarismo e fundamentalismo religioso isso é uma monstruosidade)?

Poderia ter perguntado ao próprio, mas preferi guardar para questioná-lo em outro momento, mais calmo, e fazer conjecturas até lá.


13 de dezembro de 2024