Tenho variado meus locais de estudo em São Paulo entre minha casa, a
PUC e o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Se na PUC há basicamente
universitários, no CCSP, há uma considerável variedade de tipos:
universitários, estudantes do ensino médio e cursinho,
concurseiros, gente sem vínculo oficial com o ensino, e sei lá
quais outras possibilidades.
Hoje – agora – havia vindo no CCSP almoçar e decidi estudar no
próprio restaurante. Há um pouco de conversa, mas isso é uma
constante do lugar – o que torna impossível concentração para
estudar Hegel, por exemplo, e moda usar protetor auricular. Na minha
frente, um casal, apostilas de cursinho ou ensino médio a
acompanhá-los. Já havia notado uma vez o rapaz: outro dia dera uma
mini-aula de física, de quase meia hora, a um amigo, em um local
onde geralmente faz-se um pouco mais de silêncio. A mocinha, ainda
não a notara, apesar que havia belos motivos para isso – bonita, belos olhos, bochechudinha, enfim.
Quando me sentei para almoçar – isso umas três da tarde –,
discutiam o que estudar – decidiram por geopolítica, se não me
engano. Seguiram um tempo lado a lado, cada um com sua caneta grifa
texto, até que ela se apoiou em seu ombro, para estudar mais
confortavelmente. Tão confortável que logo dormiu. Ou talvez nem
tanto, porque não demorou para se debruçar sobre a mesa e dormir
mais agradavelmente. Ele seguia a mudar as páginas e fazer correr a
caneta por elas. A mocinha acordou depois de um tempo, e sem ter
estudado muito, quando olhei para eles novamente, estava o namorado a
explicar-lhe não sei bem o que.
Fiquei pensando. Tinham seus dezessete anos, mais ou menos, e o
futuro em aberto, amplo, farto – assustador, se se parar para
pensar. Em um ano ele poderia estar cursando o curso que queria, na
melhor universidade do país, em São Paulo, mesmo; enquanto ela
teria de decidir entre um curso que não lhe apetecia, só para
seguir morando em Sampa, ou aceitar entrar no curso que era sua
segunda opção, a oito horas da casa dos pais e do namorado. Em dez
anos, ela poderia ser uma mulher bem-sucedida, uma carreira de
sucesso e um futuro promissor dentro dela, engolindo a vida ao fim do
dia, junto com dois comprimidos, para afogar qualquer pensamento
acerca do caminho que trilhara. Ele poderia se descobrir em algo
absolutamente inesperado e diferente e, a despeito da pressão dos
pais por ganhar dinheiro ou deixar de ser “vagabundo”, se sentir
feliz diante de tudo o que poderia ser e abandonou.
Tinham o devir em aberto, com ampla gama de opções – até pela
condição social. Deviam ter suas angústias. Certamente as teriam –
passarei, não passarei, onde, no que, terei sucesso –, mas
pareciam estar presentes o suficiente para saber desfrutar do agora –
por mais que fossem chatas apostilas ao lado do companheiro –,
alheios a possibilidades – futuras ou passadas.
É claro que me projetava neles, em boa medida. Daqui um mês estarei
começando uma faculdade que é minha segunda opção, porque não
consegui passar na FAU-USP. Daqui um ano é esperado que eu já tenha
defendido meu mestrado, e que já esteja preparando o projeto de
doutorado. Mas vejo diante de mim um futuro amplo, talvez mais vasto
do que via quando tinha dezessete anos. Ao mesmo tempo, sinto que
algo precioso do agora se me escapa, escorrendo em possibilidades
pretéritas que tornam o desabrochar do presente abrupto, em
solavancos, carente da leveza necessária.
Quando estava prestes a terminar de escrever esta crônica,
explicação do namorado já encerrada, a garota troca de apostila e
boceja. A invejo por se permitir um quê de preguiça em plena
quinta-feira, como quem não sente que tem tempo perdido para
recuperar.
São Paulo, 26 de abril de 2012.
1 comentário:
Borges prendeu um sábio numa cela ao lado de um tigre, perpetuamente ('A escrita do deus' - O Aleph). O sábio tentava desvendar certo mistério divino enquanto aguardava a morte. Desconfiou que as linhas no pelo do tigre fossem a escrita que deus usou para redigir seu mistério. Uma mesma realidade imutável então se abriu farta de possibilidades, como se o sábio pudesse andar por onde quisesse no mundo.
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